Atalho entre Santo Antônio do Porto e Santana do Garambéu MG. À frente, travessia de canoa no Rio Grande. |
VAI LÁ UM ANDARILHO.
O andarilho é uma figura anacrônica que destoa da
paisagem. E antes de tudo um forte. Tem de ser forte de corpo e mente, porque
uma coisa depende da outra e vice-versa. Minha anfitriã de Liberdade disse que
passava por lá muitos ciclistas, mas a pé, eu era o primeiro. Há muitos
andarilhos como eu, mas praticamente todos caminham em rotas pré-estabelecidas,
como Caminho de Santiago, Caminho da Fé, Caminho do Sol, Caminho da Luz. E, à
medida que o turismo de caminhada cresce, vão surgindo os “prestadores de
serviço” correspondentes: gente pra transportar as mochilas, carros de apoio,
gente pra cuidar da água, da comida, da roupa, das pousadas... Parece que é da
essência animal deixar-se conduzir e relegar a terceiros as tarefas mais
comezinhas de si próprio.
O desgaste mental em caminhos aleatórios como este que
fiz é maior. Não há setas indicativas, nem pousadas pré-cadastradas. Não há
sites na internet com informações práticas detalhadas. Não há qualquer
possibilidade de eventual companhia. E há o estranhamento da população local,
que está vendo a figura pela primeira vez. Sendo que transportar-se com as
próprias pernas nunca esteve tão fora de moda.
Lá vai a figura. Chapéu de palha na cabeça, vê-se de
longe. Calça escura, camiseta clara, de manga longa. Luvas e cachecol seriam
demais, então passa protetor solar no dorso das mãos e no pescoço e cangote.
Não se preocupa com a barba, porque ela ajuda a proteger. Além de colar na
figura um ar messiânico que ajuda a conquistar respeito. Tênis e meia fina. A
temperatura pode baixar, que nos pés o andarilho não sente frio. Nem nas
pernas. Nada de botas. São mais pesadas, menos flexíveis e menos transpiráveis.
E quando molham ou sujam, demoram mais a secar e dão mais trabalho para limpar.
E a roupa deve ser leve e ventilada e, se possível, impermeável (já há tecido assim, mas caros, que permitem
a evaporação do suor e não deixa passar a água da chuva). Mas, quanto mais
coberta a pele, melhor, nada de bermudas e camisetas regata. Não tem protetor
solar que chegue para dez horas de sol na cacunda. A proteção contra o sol deve
ser mecânica. Os cremes apenas complementam.
Lá vai ele, com sua mochila enorme. Um camelo. Leva
muita água, não confia em minas e rios de beira de estrada. E a água é o melhor
dos alimentos. Em regiões montanhosas, costuma ser confundido com escaladores
ou pilotos de parapente(na região, há
muitos morros de onde se salta. Eu levava a mochila envolta com capa plástica
de chuva, fica parecida com o equipamento enrolado nas costas, fui considerado
piloto de parapente muitas vezes. Mas a população considera mais louco um
andarilho que um daqueles saltadores).
O andarilho de longas distâncias por conta própria está
preparado para dormir no mato, porque não suporta ficar refém de uma zona
urbana, de um hotel, de um caminho. Dentro da mochila leva uma barraca e um
saco de dormir. E não gosta de passar frio nem quando está parado. Mas suas
roupas de frio são leves, pouco volumosas e eficientes. O andarilho aprende na
prática muitos truques para manter o corpo funcional e confortável, sem bolhas
e sem assaduras, mesmo após tanto atrito. Duas mudas de roupa apenas, que ele
vai lavando à medida que troca.
Lá vai a essência de um humano e nenhum rabicho. E com
todos os caminhos do mundo à disposição.
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