quarta-feira, 24 de junho de 2015

Um andarilho típico, mas incomum.

Atalho entre Santo Antônio do Porto e Santana do Garambéu MG. À frente, travessia de canoa no Rio Grande.
VAI LÁ UM ANDARILHO.
O andarilho é uma figura anacrônica que destoa da paisagem. E antes de tudo um forte. Tem de ser forte de corpo e mente, porque uma coisa depende da outra e vice-versa. Minha anfitriã de Liberdade disse que passava por lá muitos ciclistas, mas a pé, eu era o primeiro. Há muitos andarilhos como eu, mas praticamente todos caminham em rotas pré-estabelecidas, como Caminho de Santiago, Caminho da Fé, Caminho do Sol, Caminho da Luz. E, à medida que o turismo de caminhada cresce, vão surgindo os “prestadores de serviço” correspondentes: gente pra transportar as mochilas, carros de apoio, gente pra cuidar da água, da comida, da roupa, das pousadas... Parece que é da essência animal deixar-se conduzir e relegar a terceiros as tarefas mais comezinhas de si próprio.
O desgaste mental em caminhos aleatórios como este que fiz é maior. Não há setas indicativas, nem pousadas pré-cadastradas. Não há sites na internet com informações práticas detalhadas. Não há qualquer possibilidade de eventual companhia. E há o estranhamento da população local, que está vendo a figura pela primeira vez. Sendo que transportar-se com as próprias pernas nunca esteve tão fora de moda.
Lá vai a figura. Chapéu de palha na cabeça, vê-se de longe. Calça escura, camiseta clara, de manga longa. Luvas e cachecol seriam demais, então passa protetor solar no dorso das mãos e no pescoço e cangote. Não se preocupa com a barba, porque ela ajuda a proteger. Além de colar na figura um ar messiânico que ajuda a conquistar respeito. Tênis e meia fina. A temperatura pode baixar, que nos pés o andarilho não sente frio. Nem nas pernas. Nada de botas. São mais pesadas, menos flexíveis e menos transpiráveis. E quando molham ou sujam, demoram mais a secar e dão mais trabalho para limpar. E a roupa deve ser leve e ventilada e, se possível, impermeável (já há tecido assim, mas caros, que permitem a evaporação do suor e não deixa passar a água da chuva). Mas, quanto mais coberta a pele, melhor, nada de bermudas e camisetas regata. Não tem protetor solar que chegue para dez horas de sol na cacunda. A proteção contra o sol deve ser mecânica. Os cremes apenas complementam.
Lá vai ele, com sua mochila enorme. Um camelo. Leva muita água, não confia em minas e rios de beira de estrada. E a água é o melhor dos alimentos. Em regiões montanhosas, costuma ser confundido com escaladores ou pilotos de parapente(na região, há muitos morros de onde se salta. Eu levava a mochila envolta com capa plástica de chuva, fica parecida com o equipamento enrolado nas costas, fui considerado piloto de parapente muitas vezes. Mas a população considera mais louco um andarilho que um daqueles saltadores).
O andarilho de longas distâncias por conta própria está preparado para dormir no mato, porque não suporta ficar refém de uma zona urbana, de um hotel, de um caminho. Dentro da mochila leva uma barraca e um saco de dormir. E não gosta de passar frio nem quando está parado. Mas suas roupas de frio são leves, pouco volumosas e eficientes. O andarilho aprende na prática muitos truques para manter o corpo funcional e confortável, sem bolhas e sem assaduras, mesmo após tanto atrito. Duas mudas de roupa apenas, que ele vai lavando à medida que troca.

Lá vai a essência de um humano e nenhum rabicho. E com todos os caminhos do mundo à disposição.

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