segunda-feira, 29 de junho de 2015

3/7 - Terceira parte (de sete): Itens 14 a 20.

Estrada em região de terra rossa (vermelha). Perto de Boa Esperança MG.

14 - MATA-MOTO.

E mata-bicicleta e mata-burro. O advento do automóvel no meio rural trouxe a necessidade de inventar o mata-burro, nas estradas sem cerca, que passam no meio do pasto. Senão, os motoristas teriam de abrir depois fechar cada uma das existentes em toda divisa de fazenda. Tenho alguns leitores que não fazem ideia do que seja um mata-burro. Uma vala transversal de 2 metros de largura e um metro de profundidade interrompe a estrada. Sobre ela são colocadas no sentido transversal vigas de madeira ou aço espaçadas entre si 10 centímetros. Têm a função de impedir a passagem de muares, equinos e bovinos, porque, se o fizessem, suas patas entrariam entre as vigas e acabariam presas e provavelmente quebradas. Enquanto isso, o pneu passa tranquilamente. Por isso, ao lado, deve haver uma porteira para permitir a passagem de cavaleiros e veículos de tração animal. Só que no sul de Minas não há mais tais veículos, porque as porteiras, de madeira ou arame, são estreitas, permitindo passar apenas um animal.
Porém, depois de Piedade e até Sousa, encontrei muitos mata-motos. São mata-burros de ferro, com as vigas no sentido longitudinal. Ou seja, as vigas estão no mesmo sentido da estrada. Para os pneus largos dos automóveis não tem problema. Mas os pneus das motocicletas podem se encaixar nos vãos entre as vigas e provocar um acidente. Bicicletas são seres alienígenas naquele mundo e só passam empurradas. Mas todo mundo só anda de moto lá agora, um fenômeno recente. O motoqueiro precisa ir muito devagar, para acertar a viga, como um burro manhoso a escapar do pasto. 

15 - SORTE, COINCIDÊNCIAS E OUTROS EVENTOS ALEATÓRIOS.

Dizem que a sorte ajuda os bêbados, os imprevidentes. Há quem garanta que a sorte ajuda os esforçados (a sorte ajuda quem cedo madruga). Eu digo que a sorte ajuda os atrevidos. Eu não via viva alma há uma hora, quando me deparei com uma indecifrável bifurcação. Nesse instante, parou uma caminhonete ao meu lado. Aí foi só perguntar. Eu estava perdido perto de Claraval e a água acabara. De repente, uma mina acessível, com uma mangueira adaptada, para facilitar a captação nas garrafas. Após caminhar 35Km debaixo de muita poeira, eu chegava à MG-050, próximo à ponte do Rio Grande abaixo da barragem do lago de Furnas, determinado a esperar ali o ônibus para Capitólio. Nisso para o caminhão com técnicos da CEMIG para conversar comigo, especular. E me informam que os ônibus não passavam naquele trecho, desviavam pela crista da barragem, eu deveria caminhar à esquerda ou à direita até os trevos onde eles saíam ou entravam na rodovia. Eu teria ficado a tarde inteira ali... Chego no porto da balsa para Guapé e ela está zarpando. Tenho de esperar ela ir e voltar. 20 minutos. Foi o bastante para perder o último ônibus para Ilicínea, pois cheguei na rodoviária às 14h10 e ele havia saído às 13h55. Fui à saída da cidade e o primeiro que passou me levou de carona. Economizei a passagem e ainda fui conversando com um morador local, com quem obtive muitas informações sobre a região e a inundação das terras e da cidade ocorrida em 1963, com a construção do lago de Furnas. Enfim, tento fazer a sorte acontecer. Dou muitas alternativas ao acaso.

16 - CACHORROS.

É sabido que em toda casa de beira de estrada há um cachorro na vigia. Mas eu acrescento que raramente há apenas um. Quase sempre é uma matilha. E quando não há nenhum, fico triste, porque significa que a propriedade está abandonada. Os cachorros fazem aquele escarcéu, a gente passa, eles se aquietam. De repente, o escarcéu recomeça e eles vêm em nossa direção novamente. Foi o dono que atiçou. Filhadamãe! Aí lembramos do rosto fugidio que apontou e desapareceu rapidamente quando passamos em frente. Aqueles caboclos arredios, que não gostam de gente... Creio que fazem isso para se divertir com esse tipo de molecagem que consiste em deixar o forasteiro em apuros, para deixar de ser besta. Comigo se decepcionam, porque tenho um método infalível e pouco trabalhoso de enfrentar cachorro: é só colocá-lo em seu devido e inferior lugar intelectual. O que não posso fazer com os respectivos donos, portadores de incontornáveis manhas. Em duas ocasiões, tive vontade de passar-lhes uma descompostura. Na estradinha que dava na trilha da subida da montanha da nascente do Rio Grande, encontrei um casal acompanhado de seus dois cachorros. Que me acossaram com muito escândalo. E os donos na muda, sem qualquer gesto ou grito para controlá-los. Já na estrada paralela ao Rio da Prata, em direção ao povoado de Mirantão, um cachorrão realmente feroz escapou do seu cercado e avançou em mim com maior ênfase. Certamente era um bom ator. Tive o  trabalho de parar e me virar e gastar um olhar mais severo para aquietá-lo. Tudo sob os olhos impassíveis de um cavaleiro que tangia o gado no pasto ao lado, dono do cadelo.

17 - FILHOTE ABANDONADO (CACHORRO SEM DONO).

Logo no primeiro dia da caminhada, na rodovia entre Franca e Claraval, comecei a ouvir um ganido incomum, que lembrava o canto da seriema. Então apontou do meio do capinzal no acostamento um cachorrinho preto, com seu andar desengonçado e seu latido agudo de filhote. Olhei em volta, nenhuma casa. Já saquei toda a história. Conheço-a bem. Casa pobre de caipira, a cadela pariu uma ninhada, cada um mais saudável que o outro, a casa já devidamente guardada por quatro adultos. O matuto falou com os vizinhos, avisou parentes distantes, acho que até anunciou na rádio, conseguiu destinar cinco, mas esse último não teve jeito. Esperou quase um mês. Ninguém. Não havia espaço para mais um cachorro no lar. Foram de carro até o local mais ermo da estrada e soltaram-no lá. Nem boa sorte desejaram, porque, afinal, não era gente... e o mundo urge, se cochilarmos as coisas práticas passam por cima.
O cãozinho passou a me seguir, bem junto de mim, como a dizer que não admitia minha rejeição, porque eu era sua única esperança. Ele havia chegado ao mundo há pouco e dependia de mim para sobreviver. É comum cães sem dono acompanharem andarilhos por longos trechos, até se cansarem daquela mesmice humana de andar sem parar para cheirar nada. Mas filhotes, e ainda implorando com todos seus recursos expressivos para não desistirmos dele, foi a primeira vez que me ocorreu. Tentei alguns recursos para fazer o cachorrinho desistir de mim. Bati o pé, gritei, fiz cara feia, ameacei com vara, ameacei chutar e nada. Ele estava realmente desesperado e quanto mais eu o repelia, mais ele se apegava a mim. Cogitei a ideia de levá-lo a alguma casa próxima e deixá-lo com o morador. Mas conheço esse povo, sei qual seria a resposta. Sendo que levar o cachorrinho comigo estava fora de cogitação porque, além de abortar a minha caminhada, ainda me obrigaria a viajar 500Km de ônibus com ele, coisa que me parece não ser permitido. E realmente não sou adepto de animais em nossas residências urbanas.
Para enrijecer meu coração, passei a considerar que aquele cachorrinho poderia crescer sem dono. E isso seria uma felicidade. Porque indubitavelmente é triste a vida de cachorro com dono. Sempre no mesmo lugar, comendo a mesma comida, usando uma incômoda coleira,  e sendo espezinhado pelo dono a toda hora. Recebendo cafuné da mesma mão. Sendo levado ao veterinário e chamado de Joaquim ou Pierre. Isso quando não fica preso a uma corrente ou quando não mora em apartamento. Ou quando não tem um dono ranzinza. Ou não precisa brincar com uma criança. E só podendo ver a cachorrinha da vizinha de longe. Cagando e sofrendo o desaforo de ver o dono imediatamente  recolher suas fezes.
Um cachorro sem dono corre muitos riscos, é certo. É baixa a probabilidade dele chegar à vida adulta. Ainda mais quando abandonado filhote à beira de uma rodovia. Mas, se ele consegue sobreviver, atinge a sorte grande. Tem uma vida ativa pela frente. É comida farta e variada que ele mesmo vai caçar, muitas cadelas vadias e o mundo como quintal. E jamais será chamado por nome de animal de outra espécie. É caso em que vale o risco à segurança. Saí correndo até o cachorrinho me perder de vista. Sou um irresponsável sentimental, porque cativei e fugi? Que nada! Fui apenas a bola da vez. O primeiro que passou em sua fase carente. Um cachorrão que nos acompanha vai como companheiro, independente – um igual. A amizade é desfeita à primeira contrariedade. Mas o filhote queria um dono. E isso eu não estava preparado pra ser.

18 - GUAPÉ

Cheguei na beira do porto árido de árvores e areias, de argilosas praias. A balsa deu meia volta me deixando a ver navios imaginários. Guapé do outro lado, por causa de um minuto de atraso eu teria de esperar a balsa ir e voltar. A cidade de Guapé, contra a vontade, pontificando a península artificial que apontava na margem oposta, arredada que fora quando da inundação do mundo. O mundo de água e ar e argila e nenhum cuitelo.
Guapé ficava na beira do Rio, havia uma ponte para unir as margens. É incrível como a caboclada gosta de uma baixada, de uma beira de rio. Ninguém constrói a casa lá em cima, no morro. Toda cidade ou povoado fica no vale. Acho que por causa da facilidade do acesso à água. Aí veio Juscelino e inventou de construir uma barragem enorme, para represar o rio. Juscelino, com sua mania de desalojar os acomodados. Os funcionários públicos federais, com a mudança da capital do Rio para o nada do planalto central. Os caboclos ribeirinhos, com seus pitos e suas violas e seus ranchos de pau a pique e seu centenário conformismo, com a inundação de suas terras. Guapé foi inundada, o governo construiu outra cidade mais pra cima. Por isso a igreja tem arquitetura moderna – será que é do Niemeyer? esse ideólogo de igrejas tão lindas e tão claras onde até se esquece de rezar -  e as praças e as ruas têm um traçado muito diferente das outras cidades próximas. O sertão virou mar em 1963 e as turbinas hidrelétricas começaram a girar em 1965. Minas finalmente ganhou um mar. Muita gente desgostosa deixou a região. Muitos fazendeiros se negaram a vender as terras ao governo (indenização). Para eles, havia no mundo uma única lógica na transação de terras. A lógica da propriedade privada. Não queriam vender, não estavam interessados no negócio. Até que a água subiu, coisa de Deus, e o mundo de muita gente submergiu, como se fosse o Dilúvio. Entraram na Justiça, houve suicídios, muitos se mudaram para Pratápolis. Onde havia a ponte, hoje há a balsa, operada gratuitamente pela operadora da barragem. E a cidade é sem graça. O rio passava e o mar agora fica parado no meio do território do município, algo pouco lógico, considerando que esse rio, uma centena de quilômetros abaixo, divide dois estados. E considerando o costume de usar grandes acidentes naturais como limites administrativos intermunicipais.

19 - MUNDO VÉIO SEM TRANCA.

E muitas porteiras. Vou de ônibus até Itutinga e de lá continuo a pé até Carrancas. Mas é domingo e o circular só vai até Itumirim. Então vou com o circular, desço no trevo de Macuco e acabo de chegar de carona. Ou vou andando. Se atrasar e não chegar antes do escurecer, acampo na estrada. Para isso, levo a casa nas costas, 2,5 Kg a mais. Mas poderia iniciar a caminhada em Rosário ou ficar dormindo no hotel em Lavras. E se eu ficasse curtindo uma praia no Capivari, a meio caminho? Ou improvisasse um anzol e uma linha num bambu, cujas moitas estão por toda parte? É possível colher minhocas com a mão, no brejo beira rio. Ligo a internet móvel ou economizo? Vale a pena ver as últimas notícias? Nego ajuda ao espertinho que perdeu a carteira e quer 8,50 pra voltar pra casa, porque sou andarilho e estou com o dinheiro contado. Incrível como pululam esses tipos nas rodoviárias. Mas abro o Google maps pra mocinha bonita que me pergunta se sei onde tem um mapa. Ela me pergunta se conheço algum lugar bonito pra se ir, está viajando de carona pela BR. Ela quer aventura, mostro-lhe a mochila. Mas ela só aceita carona na BR. Só que aqui não tem BR, aqui tem MG. Sendo que sou SP, mas posso trabalhar com outras letras do alfabeto. Digo que estou a pé, ela tira os trem.  E, afinal, há um ônibus  às 9h45 pra São João Del Rei, que passa em Itutinga. Mais uma etapa viabilizada. Amanhã a gente planeja o depois de amanhã, no hotel em Carrancas, antes de dormir. São Vicente ou Madre de Deus? Só o Rio Grande que não sai do lugar. Represas. Não corre mas sobe ou desce. Pulsa. E o caipira a cismar.

20 - ROMPENDO CHÃO.


Sol, suor e solidão. E subida. E sanduíche. Sou uma máquina de andar. Tenho pé de ferro. E um Kompressor dentro do peito. E possantes ventiladores também, embora não muito confiáveis, como esses fabricados na China. De vez em quando engripam. Pés de ferro, como aqueles usados pelos sapateiros. Em minha casa havia um. Nem sei se ainda há sapateiros hoje em dia, quanto mais pés de ferro. Não me refiro aos operários das fábricas de sapatos, é claro. Só sei que os pés de ferro são insensíveis e eternos, embora os olhos sejam míopes e os ouvidos precários. O coração, os pés, e os pulmões – enquanto funcionam –, compensam os joelhos de plástico de Bangladesh. O chapéu de palha compensa a calvície. Os olhos e os ouvidos estão com os componentes capengas e as pilhas fracas, tudo fabricado em Formosa. Dentro da cabeça tenho um chip coreano. Dá pro gasto. Cheiros e gostos são frescuras que não entram no cardápio do andarilho. Seus captadores são rudimentares, feitos a canivete. Uma máquina bem rodada: dois terços já se foram. O agadê da memória é do mais fundo quintal paraguaio. Dois terços já? Mas tenho os pés de frio e bruto e eterno aço. E um Kompressor dentro do peito. Alemão.

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