Estrada em região de terra rossa (vermelha). Perto de Boa Esperança MG. |
14 - MATA-MOTO.
E mata-bicicleta e mata-burro. O advento
do automóvel no meio rural trouxe a necessidade de inventar o mata-burro, nas
estradas sem cerca, que passam no meio do pasto. Senão, os motoristas teriam de
abrir depois fechar cada uma das existentes em toda divisa de fazenda. Tenho
alguns leitores que não fazem ideia do que seja um mata-burro. Uma vala
transversal de 2 metros de largura e um metro de profundidade interrompe a
estrada. Sobre ela são colocadas no sentido transversal vigas de madeira ou aço
espaçadas entre si 10 centímetros. Têm a função de impedir a passagem de
muares, equinos e bovinos, porque, se o fizessem, suas patas entrariam entre as
vigas e acabariam presas e provavelmente quebradas. Enquanto isso, o pneu passa
tranquilamente. Por isso, ao lado, deve haver uma porteira para permitir a passagem
de cavaleiros e veículos de tração animal. Só que no sul de Minas não há mais
tais veículos, porque as porteiras, de madeira ou arame, são estreitas,
permitindo passar apenas um animal.
Porém, depois de Piedade e até Sousa,
encontrei muitos mata-motos. São mata-burros de ferro, com as vigas no sentido
longitudinal. Ou seja, as vigas estão no mesmo sentido da estrada. Para os
pneus largos dos automóveis não tem problema. Mas os pneus das motocicletas
podem se encaixar nos vãos entre as vigas e provocar um acidente. Bicicletas
são seres alienígenas naquele mundo e só passam empurradas. Mas todo mundo só
anda de moto lá agora, um fenômeno recente. O motoqueiro precisa ir muito
devagar, para acertar a viga, como um burro manhoso a escapar do pasto.
15 - SORTE, COINCIDÊNCIAS E OUTROS
EVENTOS ALEATÓRIOS.
Dizem que a sorte ajuda os bêbados, os
imprevidentes. Há quem garanta que a sorte ajuda os esforçados (a sorte ajuda
quem cedo madruga). Eu digo que a sorte ajuda os atrevidos. Eu não via viva
alma há uma hora, quando me deparei com uma indecifrável bifurcação. Nesse
instante, parou uma caminhonete ao meu lado. Aí foi só perguntar. Eu estava
perdido perto de Claraval e a água acabara. De repente, uma mina acessível, com
uma mangueira adaptada, para facilitar a captação nas garrafas. Após caminhar
35Km debaixo de muita poeira, eu chegava à MG-050, próximo à ponte do Rio
Grande abaixo da barragem do lago de Furnas, determinado a esperar ali o ônibus
para Capitólio. Nisso para o caminhão com técnicos da CEMIG para conversar
comigo, especular. E me informam que os ônibus não passavam naquele trecho,
desviavam pela crista da barragem, eu deveria caminhar à esquerda ou à direita
até os trevos onde eles saíam ou entravam na rodovia. Eu teria ficado a tarde
inteira ali... Chego no porto da balsa para Guapé e ela está zarpando. Tenho de
esperar ela ir e voltar. 20 minutos. Foi o bastante para perder o último ônibus
para Ilicínea, pois cheguei na rodoviária às 14h10 e ele havia saído às 13h55.
Fui à saída da cidade e o primeiro que passou me levou de carona. Economizei a
passagem e ainda fui conversando com um morador local, com quem obtive muitas
informações sobre a região e a inundação das terras e da cidade ocorrida em
1963, com a construção do lago de Furnas. Enfim, tento fazer a sorte acontecer.
Dou muitas alternativas ao acaso.
16 - CACHORROS.
É sabido que em toda casa de beira de
estrada há um cachorro na vigia. Mas eu acrescento que raramente há apenas um.
Quase sempre é uma matilha. E quando não há nenhum, fico triste, porque
significa que a propriedade está abandonada. Os cachorros fazem aquele
escarcéu, a gente passa, eles se aquietam. De repente, o escarcéu recomeça e
eles vêm em nossa direção novamente. Foi o dono que atiçou. Filhadamãe! Aí
lembramos do rosto fugidio que apontou e desapareceu rapidamente quando
passamos em frente. Aqueles caboclos arredios, que não gostam de gente... Creio
que fazem isso para se divertir com esse tipo de molecagem que consiste em
deixar o forasteiro em apuros, para deixar de ser besta. Comigo se decepcionam,
porque tenho um método infalível e pouco trabalhoso de enfrentar cachorro: é só
colocá-lo em seu devido e inferior lugar intelectual. O que não posso fazer com
os respectivos donos, portadores de incontornáveis manhas. Em duas ocasiões,
tive vontade de passar-lhes uma descompostura. Na estradinha que dava na trilha
da subida da montanha da nascente do Rio Grande, encontrei um casal acompanhado
de seus dois cachorros. Que me acossaram com muito escândalo. E os donos na
muda, sem qualquer gesto ou grito para controlá-los. Já na estrada paralela ao
Rio da Prata, em direção ao povoado de Mirantão, um cachorrão realmente feroz
escapou do seu cercado e avançou em mim com maior ênfase. Certamente era um bom
ator. Tive o trabalho de parar e me
virar e gastar um olhar mais severo para aquietá-lo. Tudo sob os olhos
impassíveis de um cavaleiro que tangia o gado no pasto ao lado, dono do cadelo.
17 - FILHOTE ABANDONADO (CACHORRO SEM
DONO).
Logo no primeiro dia da caminhada, na
rodovia entre Franca e Claraval, comecei a ouvir um ganido incomum, que
lembrava o canto da seriema. Então apontou do meio do capinzal no acostamento
um cachorrinho preto, com seu andar desengonçado e seu latido agudo de filhote.
Olhei em volta, nenhuma casa. Já saquei toda a história. Conheço-a bem. Casa
pobre de caipira, a cadela pariu uma ninhada, cada um mais saudável que o
outro, a casa já devidamente guardada por quatro adultos. O matuto falou com os
vizinhos, avisou parentes distantes, acho que até anunciou na rádio, conseguiu
destinar cinco, mas esse último não teve jeito. Esperou quase um mês. Ninguém.
Não havia espaço para mais um cachorro no lar. Foram de carro até o local mais
ermo da estrada e soltaram-no lá. Nem boa sorte desejaram, porque, afinal, não
era gente... e o mundo urge, se cochilarmos as coisas práticas passam por cima.
O cãozinho passou a me seguir, bem junto
de mim, como a dizer que não admitia minha rejeição, porque eu era sua única
esperança. Ele havia chegado ao mundo há pouco e dependia de mim para
sobreviver. É comum cães sem dono acompanharem andarilhos por longos trechos,
até se cansarem daquela mesmice humana de andar sem parar para cheirar nada.
Mas filhotes, e ainda implorando com todos seus recursos expressivos para não
desistirmos dele, foi a primeira vez que me ocorreu. Tentei alguns recursos
para fazer o cachorrinho desistir de mim. Bati o pé, gritei, fiz cara feia,
ameacei com vara, ameacei chutar e nada. Ele estava realmente desesperado e
quanto mais eu o repelia, mais ele se apegava a mim. Cogitei a ideia de levá-lo
a alguma casa próxima e deixá-lo com o morador. Mas conheço esse povo, sei qual
seria a resposta. Sendo que levar o cachorrinho comigo estava fora de cogitação
porque, além de abortar a minha caminhada, ainda me obrigaria a viajar 500Km de
ônibus com ele, coisa que me parece não ser permitido. E realmente não sou
adepto de animais em nossas residências urbanas.
Para enrijecer meu coração, passei a
considerar que aquele cachorrinho poderia crescer sem dono. E isso seria uma
felicidade. Porque indubitavelmente é triste a vida de cachorro com dono.
Sempre no mesmo lugar, comendo a mesma comida, usando uma incômoda
coleira, e sendo espezinhado pelo dono a
toda hora. Recebendo cafuné da mesma mão. Sendo levado ao veterinário e chamado
de Joaquim ou Pierre. Isso quando não fica preso a uma corrente ou quando não
mora em apartamento. Ou quando não tem um dono ranzinza. Ou não precisa brincar
com uma criança. E só podendo ver a cachorrinha da vizinha de longe. Cagando e
sofrendo o desaforo de ver o dono imediatamente
recolher suas fezes.
Um cachorro sem dono corre muitos
riscos, é certo. É baixa a probabilidade dele chegar à vida adulta. Ainda mais
quando abandonado filhote à beira de uma rodovia. Mas, se ele consegue
sobreviver, atinge a sorte grande. Tem uma vida ativa pela frente. É comida
farta e variada que ele mesmo vai caçar, muitas cadelas vadias e o mundo como
quintal. E jamais será chamado por nome de animal de outra espécie. É caso em
que vale o risco à segurança. Saí correndo até o cachorrinho me perder de
vista. Sou um irresponsável sentimental, porque cativei e fugi? Que nada! Fui
apenas a bola da vez. O primeiro que passou em sua fase carente. Um cachorrão que
nos acompanha vai como companheiro, independente – um igual. A amizade é
desfeita à primeira contrariedade. Mas o filhote queria um dono. E isso eu não
estava preparado pra ser.
18 - GUAPÉ
Cheguei na beira do porto árido de árvores e areias, de
argilosas praias. A balsa deu meia volta me deixando a ver navios imaginários.
Guapé do outro lado, por causa de um minuto de atraso eu teria de esperar a
balsa ir e voltar. A cidade de Guapé, contra a vontade, pontificando a
península artificial que apontava na margem oposta, arredada que fora quando da
inundação do mundo. O mundo de água e ar e argila e nenhum cuitelo.
Guapé ficava na beira do Rio, havia uma
ponte para unir as margens. É incrível como a caboclada gosta de uma baixada,
de uma beira de rio. Ninguém constrói a casa lá em cima, no morro. Toda cidade
ou povoado fica no vale. Acho que por causa da facilidade do acesso à água. Aí
veio Juscelino e inventou de construir uma barragem enorme, para represar o
rio. Juscelino, com sua mania de desalojar os acomodados. Os funcionários
públicos federais, com a mudança da capital do Rio para o nada do planalto
central. Os caboclos ribeirinhos, com seus pitos e suas violas e seus ranchos
de pau a pique e seu centenário conformismo, com a inundação de suas terras.
Guapé foi inundada, o governo construiu outra cidade mais pra cima. Por isso a
igreja tem arquitetura moderna – será que é do Niemeyer? esse ideólogo de
igrejas tão lindas e tão claras onde até se esquece de rezar - e as praças e as ruas têm um traçado muito
diferente das outras cidades próximas. O sertão virou mar em 1963 e as turbinas
hidrelétricas começaram a girar em 1965. Minas finalmente ganhou um mar. Muita
gente desgostosa deixou a região. Muitos fazendeiros se negaram a vender as terras
ao governo (indenização). Para eles, havia no mundo uma única lógica na
transação de terras. A lógica da propriedade privada. Não queriam vender, não
estavam interessados no negócio. Até que a água subiu, coisa de Deus, e o mundo
de muita gente submergiu, como se fosse o Dilúvio. Entraram na Justiça, houve
suicídios, muitos se mudaram para Pratápolis. Onde havia a ponte, hoje há a
balsa, operada gratuitamente pela operadora da barragem. E a cidade é sem
graça. O rio passava e o mar agora fica parado no meio do território do
município, algo pouco lógico, considerando que esse rio, uma centena de
quilômetros abaixo, divide dois estados. E considerando o costume de usar
grandes acidentes naturais como limites administrativos intermunicipais.
19 - MUNDO VÉIO SEM TRANCA.
E muitas porteiras. Vou de ônibus até
Itutinga e de lá continuo a pé até Carrancas. Mas é domingo e o circular só vai
até Itumirim. Então vou com o circular, desço no trevo de Macuco e acabo de
chegar de carona. Ou vou andando. Se atrasar e não chegar antes do escurecer,
acampo na estrada. Para isso, levo a casa nas costas, 2,5 Kg a mais. Mas
poderia iniciar a caminhada em Rosário ou ficar dormindo no hotel em Lavras. E
se eu ficasse curtindo uma praia no Capivari, a meio caminho? Ou improvisasse
um anzol e uma linha num bambu, cujas moitas estão por toda parte? É possível
colher minhocas com a mão, no brejo beira rio. Ligo a internet móvel ou
economizo? Vale a pena ver as últimas notícias? Nego ajuda ao espertinho que
perdeu a carteira e quer 8,50 pra voltar pra casa, porque sou andarilho e estou
com o dinheiro contado. Incrível como pululam esses tipos nas rodoviárias. Mas
abro o Google maps pra mocinha bonita que me pergunta se sei onde tem um mapa.
Ela me pergunta se conheço algum lugar bonito pra se ir, está viajando de
carona pela BR. Ela quer aventura, mostro-lhe a mochila. Mas ela só aceita
carona na BR. Só que aqui não tem BR, aqui tem MG. Sendo que sou SP, mas posso
trabalhar com outras letras do alfabeto. Digo que estou a pé, ela tira os
trem. E, afinal, há um ônibus às 9h45 pra São João Del Rei, que passa em
Itutinga. Mais uma etapa viabilizada. Amanhã a gente planeja o depois de
amanhã, no hotel em Carrancas, antes de dormir. São Vicente ou Madre de Deus? Só
o Rio Grande que não sai do lugar. Represas. Não corre mas sobe ou desce.
Pulsa. E o caipira a cismar.
20 - ROMPENDO CHÃO.
Sol, suor e solidão. E subida. E
sanduíche. Sou uma máquina de andar. Tenho pé de ferro. E um Kompressor dentro
do peito. E possantes ventiladores também, embora não muito confiáveis, como
esses fabricados na China. De vez em quando engripam. Pés de ferro, como
aqueles usados pelos sapateiros. Em minha casa havia um. Nem sei se ainda há
sapateiros hoje em dia, quanto mais pés de ferro. Não me refiro aos operários
das fábricas de sapatos, é claro. Só sei que os pés de ferro são insensíveis e
eternos, embora os olhos sejam míopes e os ouvidos precários. O coração, os pés,
e os pulmões – enquanto funcionam –, compensam os joelhos de plástico de
Bangladesh. O chapéu de palha compensa a calvície. Os olhos e os ouvidos estão
com os componentes capengas e as pilhas fracas, tudo fabricado em Formosa.
Dentro da cabeça tenho um chip coreano. Dá pro gasto. Cheiros e gostos são
frescuras que não entram no cardápio do andarilho. Seus captadores são
rudimentares, feitos a canivete. Uma máquina bem rodada: dois terços já se
foram. O agadê da memória é do mais fundo quintal paraguaio. Dois terços já? Mas
tenho os pés de frio e bruto e eterno aço. E um Kompressor dentro do peito.
Alemão.
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