sexta-feira, 26 de junho de 2015

Enfim, o ponto final.

O Rio Grande visto de cima da última ponte. Daqui ele embrenha na montanha até a nascente, cerca de 5Km acima.
AFINAL, A NASCENTE DO RIO GRANDE.
Santo Antônio do Rio Grande, distrito de Bocaina de Minas. Para quem vem seguindo o rio no sentido da foz para a nascente, é o último povoado. Mas ainda tem 20Km de estrada para o início da subida da serra. De fato, temos de quebrar o espigão e descer uns 500 metros no sentido do vale do Paraíba para encontrar a entrada da estradinha que leva a algumas chácaras, antes de se tornar intransitável aos veículos de quatro rodas e, finalmente, a meio do caminho do desnível de 600 metros, transformar-se em trilho de vaca, em meio a capões de mata e pastagens.
Saí cedo da Pousada da Beth e do Dirceu, na zona urbana do povoado, após o tradicional café da manhã reforçado de pão e queijo fresco de um dia e café preto. Fazia um sábado bonito e, em 30 de maio, não faz calor nem frio nos vales da Mantiqueira. E a julgar pelo tráfego, todo mundo ainda estava dormindo. Ninguém! Eu seguia o último vale do Rio Grande, até ele desembicar serra acima sem possibilidade de ser seguido, por causa do brabo desnível e das grotas medonhas. Aí carece de arrodear e abordar a montanha pela parte mais amigável, nem que para isso tenhamos de andar mais e dar voltas.
Na estradinha, uns moradores locais me disseram que a distância era de 2,5horas. É, na montanha as distâncias são medidas pelo tempo que demoramos a vencê-las. Tudo depende do desnível e das condições do terreno. Eram 11h30. Assim que começa o morro as valetas tomam conta. Contei cerca de quatro casas abandonadas morro acima, por causa da impossibilidade do acesso de veículos. Mas a estradinha ainda sobe bastante, batida apenas por um trilho em que eu via rastros de cascos. Cavalos, pensava eu. Dos turistas que vão ver a nascente a cavalo, conforme me informara na véspera uma hóspede da pousada.
O trilho na estrada se transforma em trilha pura no meio da mata nas imediações de um poço onde o gado bebe água e ao lado há uma casinha de madeira que parece abandonada. Trata-se do Rio Grande, centenas de metros abaixo da nascente, vim a saber no outro dia, quando descia. A trilha segue uma lógica que eu aceitava, até subir mais e vencer a mata. Ela sai num campo aberto, onde algumas vacas pastavam. Comecei a me preocupar. Aquilo que eu vinha seguindo era trilho de vaca puro. Pois a lógica das vacas não é a mesma lógica de alguém que está subindo à procura da nascente do rio. E cogitei a hipótese de me perder naquele ermo. E aí, no pasto aberto, havia trilhos de quem vive a pastar. E eu zanzei a tarde inteira lá no alto do Mirantão, cujo cume está a 2200 metros de altitude e domina uma vasta legião de cumes mais baixos. Ali deve passar uns cinco exploradores por ano, se muito... De um lado, o mundo do Rio Grande; do outro, Resende ao fundo e diversos povoados na região de Visconde de Mauá, na serra mais abaixo.
Lá de cima eu examinava uma meia dúzia de grotas inacessíveis que iniciavam vales 200 metros abaixo. Em todas elas havia uma nascente, com certeza. E todas convergiam para o mesmo vale: o vale do Rio Grande. A nascente seria a mais distante da foz, mas isso era questão de poucas dezenas de metros de diferença. E isso naquele vasto mundo inóspito, não é fácil determinar. Eu já estava decepcionado e vinha descendo quando, a cerca de 2000m de altitude, resolvi investir em dois pedaços do mesmo plástico enganchados em duas árvores, 100 metros de distância uma da outra. Aquilo era sinalização  e só podia ter a ver com a nascente. Segui a direção, encontrei uma mina, havia bastante água empoçada, um pequeno brejo no meio do pasto pisoteado pelos animais que ali matam a sede. Fiquei animado, tirei fotos, só podia ser aquela. Quando observei melhor, nenhuma gota escorria vale abaixo. Se aquela água ia para o rio, só se fosse por baixo da terra...
O explorador diletante, com viés turístico, cedo ou tarde mostra seus vícios. Intimamente eu esperava encontrar uma trilha inconfundível indo dar num fio d´água a escorrer, emoldurado por uma plaquinha bem feita onde se lia: “aqui nasce o Rio Grande”. E tamanha era minha crendice que já criticava antecipadamente o estilo do redator: não perdoaria um adjetivo mal posto. Mas, literalmente, dei com os tênis no barro, porque ali tem um embarreado razoável com muita água parada. Ali, na cota dos 2000m, efetivamente nasce água. E numa época de chuvas mais regulares, creio que aquela água escorre. Se isso acontecer, é ali a nascente do Rio Grande, tenho quase certeza, a julgar pelo traçado que o Google apresenta, conforme constatei naquela mesma noite.
Mas eu ainda não sabia que o GPS do celular independe do sinal de internet e fui dormir desanimado. Entardecera rápido e não dava tempo de descer antes do escurecer. Armei a barraca por ali, numa pequena colina de pasto, e tratei de dormir. Fazia frio, acordei no meio da noite e acendi o celular. Fui ao Google maps e, maravilhado, me vi localizado exatamente onde estava minha barraca, com o traçado aproximado do rio passando perto e se acabando pouco acima. Eu estava ao lado! Aquela poça d’água tinha todas as possibilidades. Quando clareasse eu continuaria a exploração, em busca do primeiro filete de água corrente.
No outro dia eu margeei a grota, mas não entrei lá não. Me contentei com uma fotografia. Aquilo é muito fundo e rodeado de mata fechada, deve ter onça. Se não estivesse chovendo, eu teria tentado algo mais. E que diferença faz a existência ou não de um filete? Por que essa sanha burocrática da necessidade do preto no branco em se tratando da nascente de um rio? Ora, a nascente absoluta de um rio será sempre polêmica. Se tiver placa, é pra turista ver. Um rio não nasce, um rio aparece. Aquele efetivo curso a correr é fruto de infinitos olhos d’água a montante, visíveis ou invisíveis. Águas indecisas em brejos e encharcados, de repente, eis a corrente. Mas na Serra da Mantiqueira, a 2000 metros de altitude, em meio à mata atlântica preservada nas gargantas, é impossível determinar esses inícios. Eu deveria estar mais satisfeito com os 800 Km de rio que percorri. A nascente era só um detalhe. Um detalhe que me puxou por duas semanas e me fez andar a pé por mais de 30Km por dia. De mais a mais, apenas com uma enxada dá pra cavar um rego e fazer a água daquela poça escorrer morro abaixo. Os agentes turísticos ainda não descobriram a nascente do Rio Grande.


 No domingo chuvoso, desci a montanha pela trilha de terra escorregadia, ainda temeroso de não encontrar o caminho de volta e, após dois tombaços, saí na estrada para Santo Antônio. Eu seguira a trilha inversa na véspera, mas, diferente dos heróis de Mário Palmério (Chapadão do Bugre), não sou fruto de mera ficção. Sou muito pequeno ante a complexidade da mata e da montanha. Sou apenas um detalhe na infinita dimensão da Natureza que me envolve. Poderia sim me perder ali, que a mais poderosa arma do fraco ser é sua consciência da fraqueza própria.

A estrada estava barrenta e sem vestígios de trânsito após a noite chuvosa. Não havia viva alma em movimento. Retornei alguns quilômetros e entrei na montanha novamente, num atalho para o povoado de Mirantão, pelo vale do Rio da Prata. Ali passei por mais dois quilômetros de difícil mas descendente e bem marcada trilha. Na segunda-feira, peguei carona com o ônibus escolar até Visconde de Mauá e, dali, fui até Resende de ônibus, onde embarquei para São Paulo.

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