terça-feira, 16 de junho de 2015

Foi todo mundo pra cidade...

FAZENDA ABANDONADA.


Havia saído cedo de Carrancas e tinha 44 Km para chegar a São Vicente de Minas. A estrada de terra era boa e compensava ir por ela, porque a alternativa por asfalto era muito mais longa. Então, por mais que fosse um mundo de pouca gente, sempre era demais o trânsito de veículos, para quem iria passar o dia inteiro comendo poeira. Campos e campos de pastagens nativas, cercas malcuidadas de arame farpado sustentado por estacas capengas e desalinhadas e quase nenhuma vaca ou boi, a sustentar um semiabandono doído. 

Então, lá na baixada, começou a despontar um telhado. Fui me aproximando, era a sede da fazenda, muitas janelas no casarão. Ao lado a curralama. O fazendeiro gostava de construir a curralama perto da casa, para vigiar melhor e também porque o cheiro de bosta de vaca lembrava o doce aroma da riqueza. O casarão de porão alto estava com todas as portas e mais de vinte janelas fechadas e via-se de longe que a caiação das paredes já havia caído há tempos. O capim crescia por toda parte e o bambuzal expandia-se sem nenhum desbaste. Não parei, nem olhei muito. Não fotografei. Me dá tristeza, fugi. E não queria me arriscar a registrar um fantasma.

 O fogo dirigido havia destruído a mata atlântica e o posseiro deixara a paisagem nua à disposição do capim oportunista. Qualquer cabeça de gado daria pouco trabalho e sustentaria a vida mansa e despretensiosa do caboclo. Um ranchinho de pau-a-pique na beira do corgo, vedado com paredes de taipa de varas e coberto de capim sapé. Um cavalo, uma espingarda, alguns anzóis e linhas compradas na cidade. Uma viola, uma cabocla, uma família. E o bambuzal na beira do brejo. E a terra sem preço e sem cartório.

Os caboclos mais sacudidos e menos sensíveis que conseguissem persistir e, ajudados pela condescendência da morte prematura que não levasse cedo os filhos, conseguiam ajuntar um pequeno exército familiar de mão de obra e outras tarefas menos ortodoxas. E, com a ajuda de Deus, o alinhamento adequado dos astros, e alguns safanões convenientes, arregimentar homens e agregar terras e arrebanhar reses que finalmente resultariam em dinheiro e poder. E com isso, outros homens dependentes e fiéis. E estabelecer um feudo de 2000 hectares, com suas roças de cana e milho e feijão, para a subsistência de homens e porcos, que havia muitos no chiqueiro. De comprar, só sal e alguns metros de tecido de algodão, para fabricação própria do que vestir.

Dois mil hectares de terra corresponde a sete quilômetros de comprido na estrada, levando o vale inteiro até onde a vista alcança, de espigão a espigão. O fazendeiro já velho gostava de olhar pela janela alta do casarão – que era um casarão sem varanda – e não avistar terra alheia. Ver a fartura de galinhas e patos no quintal e o cercado da ceva cheio de porco gordo. O canteiro de couve lá no fundo e o arrozal cacheando ali na vereda do brejo, que era uma família sofisticada e já comia arroz... E gado mugindo por todo lado, e peões em seus cavalos lisos a tangê-los. Toda a vizinhança era constituída de súditos e serviçais. Com os quais pescara, caçara, tomara cachaça e sapateara catira quando moço.


E agora os filhos, cada um mais fraco que o outro, a morar na cidade para estudar. Uns montando banca de advogado, outros de médico, uma filha professora, ele cada vez mais cansado, e nenhum sucessor à vista. Mas, macho, sustentou até morrer. A viúva, que nunca fora dona de si, foi levada pra cidade, e o capim começou a crescer à beira da cisterna e no caminho pro mangueiro. Enquanto a fileira de janelas de ambos os lados e as portas da cinquentenária morada eram fechadas para sempre, para regozijo das aranhas e outros insetos e animais sorrateiros. Eis que tudo que é sólido se acaba comido pelo tempo, sufocado pelo capim, esquecido à beira de um brejo. Fugi. E por uns 5 Km foi-me muito penosa a caminhada, porque não tem nada mais cansativo que a tristeza. E se escrevo esta crônica, é apenas para cumprir o dever de repórter.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário