FAZENDA
ABANDONADA.
Havia saído
cedo de Carrancas e tinha 44 Km para chegar a São Vicente de Minas. A estrada
de terra era boa e compensava ir por ela, porque a alternativa por asfalto era
muito mais longa. Então, por mais que fosse um mundo de pouca gente, sempre era
demais o trânsito de veículos, para quem iria passar o dia inteiro comendo
poeira. Campos e campos de pastagens nativas, cercas malcuidadas de arame
farpado sustentado por estacas capengas e desalinhadas e quase nenhuma vaca ou
boi, a sustentar um semiabandono doído.
Então, lá na
baixada, começou a despontar um telhado. Fui me aproximando, era a sede da fazenda,
muitas janelas no casarão. Ao lado a curralama. O fazendeiro gostava de
construir a curralama perto da casa, para vigiar melhor e também porque o
cheiro de bosta de vaca lembrava o doce aroma da riqueza. O casarão de porão
alto estava com todas as portas e mais de vinte janelas fechadas e via-se de
longe que a caiação das paredes já havia caído há tempos. O capim crescia por
toda parte e o bambuzal expandia-se sem nenhum desbaste. Não parei, nem olhei
muito. Não fotografei. Me dá tristeza, fugi. E não queria me arriscar a
registrar um fantasma.
O fogo dirigido havia destruído a mata atlântica
e o posseiro deixara a paisagem nua à disposição do capim oportunista. Qualquer
cabeça de gado daria pouco trabalho e sustentaria a vida mansa e despretensiosa
do caboclo. Um ranchinho de pau-a-pique na beira do corgo, vedado com paredes
de taipa de varas e coberto de capim sapé. Um cavalo, uma espingarda, alguns
anzóis e linhas compradas na cidade. Uma viola, uma cabocla, uma família. E o
bambuzal na beira do brejo. E a terra sem preço e sem cartório.
Os caboclos
mais sacudidos e menos sensíveis que conseguissem persistir e, ajudados pela
condescendência da morte prematura que não levasse cedo os filhos, conseguiam
ajuntar um pequeno exército familiar de mão de obra e outras tarefas menos
ortodoxas. E, com a ajuda de Deus, o alinhamento adequado dos astros, e alguns
safanões convenientes, arregimentar homens e agregar terras e arrebanhar reses
que finalmente resultariam em dinheiro e poder. E com isso, outros homens
dependentes e fiéis. E estabelecer um feudo de 2000 hectares, com suas roças de
cana e milho e feijão, para a subsistência de homens e porcos, que havia muitos
no chiqueiro. De comprar, só sal e alguns metros de tecido de algodão, para
fabricação própria do que vestir.
Dois mil
hectares de terra corresponde a sete quilômetros de comprido na estrada,
levando o vale inteiro até onde a vista alcança, de espigão a espigão. O
fazendeiro já velho gostava de olhar pela janela alta do casarão – que era um
casarão sem varanda – e não avistar terra alheia. Ver a fartura de galinhas e
patos no quintal e o cercado da ceva cheio de porco gordo. O canteiro de couve
lá no fundo e o arrozal cacheando ali na vereda do brejo, que era uma família
sofisticada e já comia arroz... E gado mugindo por todo lado, e peões em seus
cavalos lisos a tangê-los. Toda a vizinhança era constituída de súditos e
serviçais. Com os quais pescara, caçara, tomara cachaça e sapateara catira
quando moço.
E agora os
filhos, cada um mais fraco que o outro, a morar na cidade para estudar. Uns
montando banca de advogado, outros de médico, uma filha professora, ele cada
vez mais cansado, e nenhum sucessor à vista. Mas, macho, sustentou até morrer.
A viúva, que nunca fora dona de si, foi levada pra cidade, e o capim começou a
crescer à beira da cisterna e no caminho pro mangueiro. Enquanto a fileira de
janelas de ambos os lados e as portas da cinquentenária morada eram fechadas
para sempre, para regozijo das aranhas e outros insetos e animais sorrateiros. Eis
que tudo que é sólido se acaba comido pelo tempo, sufocado pelo capim,
esquecido à beira de um brejo. Fugi. E por uns 5 Km foi-me muito penosa a
caminhada, porque não tem nada mais cansativo que a tristeza. E se escrevo esta
crônica, é apenas para cumprir o dever de repórter.
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