Um morrinho no varjão, uma nascente acima, um fazendeiro caprichoso e endinheirado, uma ilha. Ao fundo o Rio Grande, próximo a Bocaina de Minas. |
35 - O DESTINO DE RIOS E HOMENS.
O destino dos rios se assemelha ao destino dos homens. O Rio Sapucaí
abriga quase metade do Mar de Minas, mas apenas um protagonista é lembrado
nessa obra: o Rio Grande. Ali naquele pequeno mundo montanhoso do sul de Minas
eles nascem todos irmãos vizinhos, mas depois crescem e cada um vai prum lado.
O Rio São Francisco nasce a 40 Km da margem do Rio Grande, quando este já é um
moço forte. Só que enquanto o primeiro vai para o nordeste, o segundo vai para
o lado oposto. Aliás, - quem disse que os rios não são solidários entre si – o
Rio Grande ajuda com uma aguinha a meninice do São Francisco. Com a mão do
homem, mas ajuda. São as águas do Piumhi, que desaguavam no Grande e agora
deságuam no São Francisco. Graças aos diques de Capitólio, construídos por Furnas,
para não deixar as duas bacias se intercomunicarem.
Sendo que o Rio Grande teve seu destino mudado de repente, em sua
adolescência. Também ia para o nordeste, quando, em Piedade, deu uma guinada de
135º e foi para oeste. Depois, lá longe, na velhice, como se sabe, se acabou na Argentina, com outro nome, tamanha
as atribulações porque passou na vida...
Há a história de quatro irmãos e um primo ali da região. O Rio do
Peixe e o Preto e o Verde e o Aiuruoca. Mais o primo Rio Pomba. Nascem na mesma
casa, o primo nasce próximo. O Peixe e o Preto vão para leste, para o Paraíba,
morrem no norte do Rio de Janeiro. O Verde e o Aiuruoca caminham juntos a vida
inteira e, por fim, garantem a vida pacata entregando-se à chefia do Rio
Grande. O Pomba também prefere o Paraíba.
Para aqueles que se juntam ao Rio Grande, rumo ao oeste, a coisa
realmente engrossa quando encontram o rival Paranaíba, de família tão
diferente, mas tão poderosa quanto a deles. Que, enfim, pacificadas, escolhem o
rumo do interior do continente e, afinal, mais fortes, resolvem se aventurar
pelo exterior. E levam de roldão, como quem pega pela mão um garoto
inexperiente, o Tietê e o Paranapanema e o Iguaçu e o Paraguai e vão, outra
vez, lá no fim da vida, serem capazes do atrevimento de formar outro mar doce,
aquele que banha Buenos Aires. O destino dos homens escorre para o lado mais
baixo, segue ao sabor da topografia. (e, ainda, como os humanos, os rios podem
nascer legítimos ou ilegítimos, como é o caso do Rio São Francisco, abordado em
“Fozes e Nascentes”, a ser publicado).
36 - MADEIRA EM BOM JARDIM.
O desenvolvimento econômico de Bom Jardim deslanchou nos últimos dez
anos, com a chegada das madeireiras. Tudo gente grande, Saint Gobain, MRS,
Votorantim. As terras eram baratas, compraram quase tudo, reflorestaram com
eucalipto ou pinus. O eucalipto se destina a gerar bioenergia. É transformado
em carvão em carvoarias artesanais – passei ao lado de uma – ou industriais,
como a da Saint Gobain na beira da estrada a 15Km da cidade.
Eles chamam de colheita aos serviços de derrubada da árvore e
transporte do tronco até a indústria, seja a fábrica de celulose, a carvoaria
ou a de móveis. Num dia de colheita intensa, em que as enormes carretas estão
transportando a madeira pelas estradas, é melhor ficar longe. É o pior dos
mundos para o andarilho. E creio que também para os moradores locais que nada
têm a ver com o negócio. O caminhão enorme toma toda a estrada roncando alto e
levantando uma nuvem de poeira. É uma temeridade para quem circula em seus
ínfimos carrinhos.
Quem me informou essas notas foi o funcionário da área de logística da
Saint Gobain, que me deu carona até Bom Jardim. Eu havia caminhado 50Km desde
Santana do Garambéu. Escurecia e ainda faltavam duas horas para eu chegar à
cidade. Mas já estava cogitando percorrer os 10Km no escuro, pois não
encontrava bom terreno para acampar. Eu subia e descia e, a margear a estrada,
sempre o mesmo descampado de agreste e irregular pastagem natural. Ele parou
sem que eu pedisse. Disse que já havia me encontrado ou ultrapassado várias
vezes durante o dia, enquanto trabalhava nas viaturas. Eu aceitei, apesar da
determinação que fizera lá em Piedade. Nunca matei ninguém...
37 - LIBERDADE, MG.
Liberdade, 5 mil habitantes, distribui-se por dois morros, como dois
seios. Uma igreja em cada cume, ambas igualmente imponentes. Mas a zona
sensível da cidade está lá embaixo, onde passa a MG. A rodovia vicinal
transforma-se em rua do comércio principal e as igrejas ficam lá em cima, mal
rodeadas de residências. E eu, pouco esperto e descansado, porque caminhara
apenas 22 Km, escalei os dois montes antes de descobrir que o que me
interessava estava lá embaixo: a zona comercial e seu hotel e restaurante e
padaria.
O Hotel Central foi o de melhor padrão que usei durante toda a viagem.
Mas não o mais caro. 50 reais, o mesmo que paguei nas pousadas simples de Santo
Antônio do Rio Grande e Mirantão. A dona é mulher de fazendeiro. Não precisa
muito da renda do negócio. É uma mineira de pouco mais de 30 anos, lá de perto
da nascente do rio, me informou. Gosta do serviço, disse-me que hóspede seu não
sai sem café da manhã – não importa a hora -, quando lhe informei que sairia
bem cedo no outro dia e pedi o horário em que começaria a ser servido. Seu bolo
de fubá e seu pão de queijo fazem jus à fama da terra. Não sei seu nome, não
perguntei, esse meu defeito de ligar pouco para as individualidades alheias. É
uma contradição, porque muito me interessa os mundos alheios.
38 - LARANJA MADURA NA BEIRA DA ESTRADA.
Era quase meio dia, fazia calor, eu caminhava desde as 5h da manhã, e
a água estava racionada. Esperava chegar a Ibiraci para comer e beber à
vontade. Muitos cafezais dos dois lados. De repente, um pasto e um pé de
laranja na beira da estrada, carregado de frutos maduros. E nenhuma casa por
perto. Já de longe, pelo formato da árvore, tinha certeza de que não eram
limões. Mas aquelas laranjas deveriam ser tão azedas quanto. Ou será que havia
marimbondo no pé? Porque bichadas não pareciam, já que eram muitas. E baixas,
ao alcance da mão. Nem era preciso atravessar a cerca. Em certas horas é
preciso ter fé. Saquei minha faquinha e descasquei uma. E não é que era boa!
Agora não sei se por causa da sede e da fome. Só sei que chupei e comi umas
dez. E rejuvenesci meu humor. Poucas coisas são mais agradáveis a um andarilho
do que uma fruta graciosa ao lado do caminho.
39 - FOTOGRAFIA.
Da mesma forma que as 26 letras do alfabeto mais meia dúzia de regras
gramaticais permitem infinitos diferentes textos, os cerca de 150º da paisagem
vistos numa só visada por nossos olhos permitem infinitas fotografias-ideia.
Por isso acho que a fotografia é uma composição pessoal, assim como um texto ou
um quadro pintado ou uma escultura.
Sendo que aqui é texto, cara! Pode até ter figura, mas o texto tem
privilégio. Mas se você ler e olhar bem, vai ver a paisagem. Eu me esforço para
tanto, mas preciso um pouco do seu esforço, da sua boa vontade... enfim,
preciso da sua condescendência. Pudera transmitir os 360º que senti.
40 - VAI LÁ UM ANDARILHO.
O andarilho é uma figura anacrônica que destoa da paisagem. E antes de
tudo um forte. Tem de ser forte de corpo e mente, porque uma coisa depende da
outra e vice-versa. Minha anfitriã de Liberdade disse que passava por lá muitos
ciclistas, mas a pé, eu era o primeiro. Há muitos andarilhos como eu, mas
praticamente todos caminham em rotas pré-estabelecidas, como Caminho de
Santiago, Caminho da Fé, Caminho do Sol, Caminho da Luz. E, à medida que o
turismo de caminhada cresce, vão surgindo os “prestadores de serviço”
correspondentes: gente pra transportar as mochilas, carros de apoio, gente pra
cuidar da água, da comida, da roupa, das pousadas... Parece que é da essência
animal deixar-se conduzir e relegar a terceiros as tarefas mais comezinhas de
si próprio.
O desgaste mental em caminhos aleatórios como este que fiz é maior.
Não há setas indicativas, nem pousadas pré-cadastradas. Não há sites na
internet com informações práticas detalhadas. Não há qualquer possibilidade de
eventual companhia. E há o estranhamento da população local, que está vendo a
figura pela primeira vez. Sendo que transportar-se com as próprias pernas nunca
esteve tão fora de moda.
Lá vai a figura. Chapéu de palha na cabeça, vê-se de longe. Calça
escura, camiseta clara, de manga longa. Luvas e cachecol seriam demais, então
passa protetor solar no dorso das mãos e no pescoço e cangote. Não se preocupa
com a barba, porque ela ajuda a proteger. Além de colar na figura um ar
messiânico que ajuda a conquistar respeito. Tênis e meia fina. A temperatura
pode baixar, que nos pés o andarilho não sente frio. Nem nas pernas. Nada de
botas. São mais pesadas, menos flexíveis e menos transpiráveis. E quando molham
ou sujam, demoram mais a secar e dão mais trabalho para limpar. E a roupa deve
ser leve e ventilada e, se possível, impermeável (já há tecido assim, mas caros, que permitem a evaporação do suor e não
deixa passar a água da chuva). Mas, quanto mais coberta a pele, melhor,
nada de bermudas e camisetas regata. Não tem protetor solar que chegue para dez
horas de sol na cacunda. A proteção contra o sol deve ser mecânica. Os cremes
apenas complementam.
Lá vai ele, com sua mochila enorme. Um camelo. Leva muita água, não
confia em minas e rios de beira de estrada. E a água é o melhor dos alimentos. Em
regiões montanhosas, costuma ser confundido com escaladores ou pilotos de parapente(na região, há muitos morros de onde se
salta. Eu levava a mochila envolta com capa plástica de chuva, fica parecida
com o equipamento enrolado nas costas, fui considerado piloto de parapente
muitas vezes. Mas a população considera mais louco um andarilho que um daqueles
saltadores).
O andarilho de longas distâncias por conta própria está preparado para
dormir no mato, porque não suporta ficar refém de uma zona urbana, de um hotel,
de um caminho. Dentro da mochila leva uma barraca e um saco de dormir. E não
gosta de passar frio nem quando está parado. Mas suas roupas de frio são leves,
pouco volumosas e eficientes. O andarilho aprende na prática muitos truques
para manter o corpo funcional e confortável, sem bolhas e sem assaduras, mesmo
após tanto atrito. Duas mudas de roupa apenas, que ele vai lavando à medida que
troca.
Lá vai a essência de um humano e nenhum rabicho. E com todos os
caminhos do mundo à disposição.
41 - O RIO GRANDE.
Sempre tenho a impressão de que o Rio Grande só é conhecido localmente
e, ainda, sem que os locais lhe deem a devida importância. Os mineiros do alto
Rio Grande estão entretidos demais com a exuberância da Mantiqueira e seus
picos e vales e espigões e a profusão de cascatas de diversos tamanhos e
origens; com a riqueza da fauna e da
flora da mata atlântica forçosamente preservada nas pirambeiras. E afinal, ali,
o rio ainda é jovem e qualquer boa tora de araucária ou eucalipto derrubada
sobre seu corpo faz uma pinguela. Duas toras e algumas tábuas fazem uma ponte.
Os fazendeiros vão e vêm de uma margem à outra por conta própria e o gado passa
no vau. E os poucos turistas que por ali se aventuram vão em busca do clima de
montanha e querem distância de água, por causa da baixa temperatura – do
ambiente e da água. Sem contar que o rio, ali, entre vales profundos e
arborizados varjões, só se vê de perto, quando estamos sobre ele, quando temos
de transpô-lo.
Meu anfitrião na pousada de Santo Antônio do Rio Grande, nascido na
região, não sabia que, mais abaixo, o Rio Grande divide os estados de SP e MG.
O povo da região não tem noção da magnitude que o rio adquire lá longe. E o rio
corre no sentido sudoeste-nordeste, como o Paraíba e o Preto, como se fosse
apenas mais um.
Até que em Piedade do Rio Grande ele dá uma guinada à esquerda e
descamba resoluto de leste para oeste, até encontrar-se com o Paranaíba, nos
limites de Mato Grosso do Sul. Ali assume a denominação de Paraná, dá outra
guinada à esquerda e se dirige para o sul, indo encontrar o Atlântico lá na
Argentina. Se o caipira do sul de Minas soubesse que aquela aguinha banha
Paraguai, Uruguai e Buenos Aires, talvez olhasse o rio com mais consideração.
Já os mineiros do médio curso – Boa Esperança, Lavras, Passos, e
dezenas de pequenas cidades -, bem como os paulistas do norte e o povo do
triângulo mineiro, conhecem o grande rio, mas estão entretidos demais em ganhar
dinheiro na pujante economia regional de terras férteis, relevo ameno e
crescente industrialização. Os caipiras
de Franca ou São José do Rio Preto, do lado paulista, e os boiadeiros de
Uberaba e Uberlândia, do lado mineiro, são pragmáticos demais para se
permitirem veleidades além do próprio quintal.
Sem contar que o rio, em seu médio e baixo curso, não existe mais. É
quase todo água parada, numa sucessão de onze lagos e curtíssimos trechos de
água corrente entre eles. E os poucos turistas ou forasteiros que se aventuram
por ali estão mais interessados em tomar cerveja e comer churrasco nos
confortáveis ranchos de beira-rio e brincar ou pescar nos mares de água doce.
Quanto à origem daquelas águas paradas, satisfazem-se com a verossímil
explicação de que caíram do céu.
42 - ANGU & CANJIQUINHA.
Duas comidas tipicamente mineiras. O angu nada mais é que uma polenta
sem sal. Em toda refeição de mineira que se preze, tem. Água e fubá ao fogo,
numa panela, até cozinhar, mexendo sempre. Quando esfria fica sólido, pode-se
desenformar. Se tivesse um salzinho mais um molho bem temperado de carne moída
e tomate, seria polenta no capricho, e aí teria minha preferência. Nem sei se
alguém come aquilo puro. O angu é um pretexto pobre para dar a sustança do
milho ao corpo, sem frescura e com saúde. Da mesma forma que a canjiquinha,
coisa de tropeiro: com pressa, poucos recursos e muita fome. A canjiquinha pega
a quirela do milho, os grãos triturados em meia dúzia de pedaços, tempera bem
com sal, gordura, alho, cebola e alguma carne, quando tem, suína de preferência,
e cozinha com água até virar uma pasta que lembra uma sopa que passou do ponto.
Serve-se com couve refogada. Porque em casa de mineiro de verdade não falta
canteiro de couve. Sendo que canteiro de couve, para mineiro, é sinônimo de
horta e não faltam quiabo, inhame e abóbora. Mas, pensando bem, aquele angu sem
graça molhado numa carne de porco bem salgada cozida na própria gordura deve
ser de lamber os beiços. Haja artéria!
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