segunda-feira, 29 de junho de 2015

5/7 - Quinta parte (de sete): Itens 29 a 34

Viaduto da Ferrovia do Aço sobre o Rio Grande, próximo a Bom Jardim de Minas.

29 - AZEITE. A TRAVESSIA DE CANOA.

Azeite é o apelido do povoado de Santo Antônio do Porto, distrito de Piedade do Rio Grande. É comum os povoados ou pequenas cidades terem dois nomes: o oficial e o popular. Cheguei, fui indo, uma senhora perguntou pra onde eu ia, falei, ela disse que eu estava errado, que eu devia voltar, era pra lá, assim, assim. O contrário, o oposto do meu mapinha, que memorizara, achando que a simplicidade do local não valia a pena sacá-lo da algibeira, o bolso, no caso. O meu precário mapa, rabiscado por mim, olhando a tela do Google.
Mais abaixo um grupo de três mulheres e um homem tentou me ajudar. “Para onde o senhor quer ir?”.  “Pra Santana”. “Xiii! É muito longe.”, falou uma secundária senhora, pois minha interlocutora era outra. Pronto, vai começar a ladainha de que 14 Km é uma eternidade, pensei. Porque uma coisa concreta que o andarilho aprende é que as distâncias são relativas. Então perguntei: “São quantos quilômetros?”. E ela: “mais de 60”. Ela está louca, pensei. Mas em seguida a louca consertou tudo e se  lembrou de que havia um atalho. “Você vai ali por cima, pela estradinha, chega no rio, logo vê a fazenda do outro lado, chama o Miguel, ele vem te buscar de canoa”, e já foi me levando pra mostrar a saída. Então saquei o meu mapa e constatei que a sugestão da mulher era a mesma do Google. (mas o Google ia me pagar, se estivesse me levando para uma incerta travessia de canoa...)
Toda essa solicitude da mulher foi depois que ela concluiu, por conta própria lá dela, que eu pagava promessa. É que ela havia sugerido que o seu marido, o homem presente, me levasse de moto. Eu recusara, ela então compenetrada concluíra pra todos ouvirem que eu pagava promessa. Não há melhor maneira de estabelecer firme empatia com a população local que informá-la de que vamos a pé para cumprir uma promessa.
A estrada, que já era pouco usada, derivava para uma completamente esquecida, um quilômetro adiante, no alto do morro. Mas um motoqueiro, próximo à bifurcação, confirmou as instruções da Rosângela, a mulher do povoado. Toda a confusão porque, de fato, havia outro caminho, pouco mais longo, passando pela balsa, constatei depois. Quatro quilômetros de estrada em desuso, havia apenas o rastro de uma motocicleta. Os murunduns dos formigueiros intactos em pleno leito carroçável. E a inquietante sensação de trilhar um canto esquecido de Deus e riscado do mapa do mundo.
Cheguei na beira do Rio Grande, 50 metros, águas tranquilas, as instalações da fazenda do outro lado, só dava pra ver as telhas. Vi a canoa amarrada à margem oposta, os capins caindo por cima. Tive a sensação de estar integrando uma pintura a óleo dessas vendidas por camelôs. Gritei o Miguel. Silêncio. Gritei uma, duas, três, quatro vezes. Nada. Tou lascado, pensei. O pisoteio do gado indicava que eles bebiam água ali. Lá pela sétima vez alguém respondeu: “Já vou”. Ufa! Miguel acabara de chegar da cidade. Por pouco que não fico na mão. Veio impulsionando a canoa com uma vara apoiada no fundo do rio. O lugar mais fundo batia na minha cintura. Uma decepção, nada de remo, nada de fortes correntezas, nada de águas profundas e misteriosas. Era só erguer um pouco a mochila e atravessar andando. O canoeiro nem tinha cara de índio e aquela operação lhe parecia banal demais, como se estivesse alimentando os porcos. Deve ser por isso que a estrada do Google maps passa bonita por ali. Foi naquele ponto que o Rio Grande perdeu sua invencibilidade, em meu imaginário.

30 - CASCATA & SERIEMA: O SOM DAS ESTRADAS DO SUL DE MINAS.

E galinha d’Angola & cachorro & Ganso. E o silêncio feliz dos canários da terra.
E araras e maritacas e anuns. Uma orquestra acompanha o andarilho, pelas estradas ermas em meio a pastos para o gado. Animais vigilantes, o cachorro dispensa apresentação. Muito raro encontrar só um cachorro em cada casa. É barulhento e agressivo, assim como o ganso - raro na região. A seriema anuncia o andarilho ao longe, da colina oposta. Quem não conhece o canto da seriema, é só ouvir a introdução acordeônica do Mário Zan na guarânia Seriema do Mato Grosso. Só que ela não trabalha para ninguém, ela trabalha para os da sua espécie, ao contrário do cachorro. Os bandos de galinhas d’Angola são comuns em seus voos longos e fortes gritos coletivos de tô fraco. Os anuns são insinuantes e impertinentes e anunciam o estrangeiro como se estivessem zombando dele em seus imperfeitos trinados guturais. Os anuns são insolentes, sempre achei. As maritacas andam em nuvem e são exageradas e escandalosas. E venais. E as araras poucas que sobram não estremecem ninguém, mas grasnam. E se o vento assobia canção variada e agradável, os rios cantam diuturnamente a mesma e enfadonha nota nas corredeiras de montanha abaixo. Gralhas não vi. Mas vi muitos canários-da-terra, que estão sempre em silêncio, a confirmar a afirmação de que passarinho em gaiola canta de tristeza.

31 - SOUSA

Sousa do Rio Grande, distrito de Lima Duarte, é um povoado triste. O dono do bar, 50 anos, é um hippie frustrado. Pensava em viajar o Brasil de carona, quando se aposentasse, mas aí casou de novo, vieram mais dois filhos... Encostado no balcão estava o cavaleiro que passara por mim há pouco, na entrada da cidade. Ofereci-lhe uma cerveja, ele recusou, disse que sofria de sinusite, só tomava pinga. Ele usava a mula como meio de transporte; até naquele mundo de fazendas de gado isso é raro. Há muitas plantações de eucaliptos.  Era época de colheita, avisava uma placa à beira da estrada. Por colheita, entenda-se a derrubada das árvores com mais de trinta metros de altura. As carretas carregadas de troncos para a carvoaria da Saint Gobain passam a toda hora, levantando o maior poeirão. A filha mais nova do dono do bar sofre com a bronquite alérgica. Há uma igreja verde em meio a uma praça no mato, no alto do morro, esquecida pelo comércio. Constatei ao longo do caminho que é uma tendência o abandono da praça da matriz pelo comércio. Essas praças costumam ficar nos morros, como se fossem castelos medievais com funções de vigia e defesa. Os comerciantes preferem se instalar à beira das estradas e rodovias, que passam mais embaixo. Vi isto também em Liberdade, Santo Antônio do Rio Grande e Mirantão.
Sousa. Quem mora ali não mora na roça nem na cidade. Não há sinal de celular nem asfalto na ligação com o resto do mundo. Está rodeada de bosques artificiais, que não têm nada a ver com floresta. Nem o rio passa perto.

32 - MINEIRA DO SUL DE MINAS.
Nesse dia que passei por Souza, caminhei 50Km. É uma distância que tira do sério qualquer andarilho. Começamos a sentir certo descontrole mental, como se fôssemos uma máquina autônoma a andar por conta própria, além da nossa vontade. E então a imaginação, aproveitando-se desse desconjunto, se solta. E a sanfona de sobe e desce de vales e montanhas da Mantiqueira vai-se encolhendo, a fazer mais profundos e inclinados grotas e paredões, que vão chegando mais perto, ameaçadores. Um cenário bom para uma máquina desvairada de corpo e mente. De repente, comecei a ouvir uma modinha. Um ritmo antigo, irreconhecível, mas do tempo do império, com certeza. Insistente, que me acompanhou o resto da viagem para, finalmente, me deixar em paz na noite em que pernoitei na barraca no alto do Mirantão. É que, debaixo de uma lua quase cheia a clarear o interior da barraca,  e em meio ao desconforto do frio, senti o fluxo de bissextas ondas, a roçar a minúscula e úmida  abóbada de lona. Saquei meu caderno e, somente com a claridade leitosa da noite, anotei estes precários versos que o vento assoprava pra modinha chata:

 “Trabalho sol e livro
Propaganda só na feira
Não vem não vai não liga
Fica até segunda-feira.

Trabalho só é livre
Quando feito na soleira
Ou vem ou vai ou fica
Não me mate de canseira.


Ontem andei de porre
Por aí dando bobeira
Trabalho só é limpo
Quando posto em carteira.

Já vem já vai estica
Descansa a semana inteira
Vai zen safa e sarada
Nessa vida sorrateira.

Aí tem já evem explica
Pensa que é seresteira:
“Qui mininu mais bunitu
Qui mi dá uma cansera.

Amém neném a morte
Amanhã é segunda-feira
Meu bem meu santo é forte
Tou na hora derradeira”.

A prosa o Rosa a arte
Saia só safa e mineira
Cê mi mata de saudade
Deixa de sê Mantiqueira.

Qui minina mais bunita
Água sol serra faceira
Chá café bolinho leite
Muita lenha na lareira.

Trabalho sol e livro
Não se prenda em besteira
Trabalho só é livre
Quando acaba a sexta-feira.

Cachorro e gato a noite
Chá café pão e lareira
Qui minina mais bunita
Safa sã mina mineira.”
  
33 - UMA FERROVIA DO IMPÉRIO. INACABADA.

Perto de Souza comecei a notar estranhos cortes e aterros na estradinha de terra estreita. Aterros e cortes enormes, a estrada quase plana. Afinal, conheço alguma coisa de construção de estradas e movimento de terra. Antigamente só se fazia isso em ferrovias. Os trens nunca suportaram grandes desníveis. Mas os caminhos de carros de boi subiam e desciam e molhavam rodas e cascos nas águas mais fundas do vale, e subiam ao mais alto da crista da serra. Ao final do dia, o funcionário da Saint Gobain que me deu carona até Bom Jardim confirmou minha desconfiança. Era uma ferrovia cuja execução parou no meio. Ainda no tempo do império, fora construída por escravos, havia até numa cidade próxima uma casa com mais de 80 janelas para abrigar os operários. Então, até Liberdade, seguindo a cota praticamente constante da junção do planalto com o varjão do Rio Grande, fui observando o notável trabalho de engenharia de pontes de ferro e taludes e drenos e pisos, cujos princípios ainda hoje regem a construção de rodovias e ferrovias.

34 - A FERROVIA QUE TRANSPORTA MINAS PARA O JAPÃO.

Na faina do trânsito não havia escutado. Mas no silêncio do quarto do hotel, em Bom Jardim, ouvi o som de uma poderosa buzina. Buzina de trem, a mesma do trem que passava perto da minha casa, quando eu era adolescente. E essa buzina toca a noite inteira e o dia inteiro. Em Carrancas é o sino da igreja; em Bom Jardim é a buzina do trem. Só no outro dia foi que vim a descobrir que por ali passava a Ferrovia do Aço – a ferrovia do minério de ferro -, e as buzinas vinham dos trens que manobravam na estação próxima.
Não me informei pela internet não. Perguntei a um passante, enquanto estava debaixo do viaduto da ferrovia que passa sobre o Rio Grande, vendo um trem de 120 vagões passar. Ali perto há um túnel de quase 10Km. A linha é única, o trem tem mais de mil metros. As estações nada mais são que enormes pátios de manobra para permitir o cruzamento de trens que vão e que vêm.

E o trem só transporta minério de ferro. O trem transporta Minas para o Japão. Aos poucos. Quebram as montanhas de Minas em pedras britadas, enchem os vagões a granel e levam até os navios. No Japão elas são transformadas em aço. Pedra mineira, aço japonês. A esperança dos mineiros é que descubram a tempo um material alternativo ao aço. Senão, não demora e Minas será uma desolada planície de crateras. Então me lembrei da polêmica que envolveu a construção dessa ferrovia, por volta dos anos 1980, com a censura à imprensa enfraquecida por causa da ditadura já capenga. E foi inevitável a comparação com a ferrovia do império, em cujo leito abandonado eu caminhava, indo para Liberdade. É muito custoso construir ferrovias. 

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