segunda-feira, 29 de junho de 2015

4/7 - Quarta parte (de sete): Itens 21 a 28.

Cruz de beira de estrada, de morto de família pobre ou desleixada.

21 - MORTES NA ESTRADA: CRUZES.

Na viagem vejo muitas cruzes fincadas ao lado do caminho. Nelas escrito o nome do finado e as datas de nascimento e morte. Até hoje nunca vi o nome de uma mulher. E olha que leio todos. Por que as mulheres não morrem à beira da estrada?(a primeira cruz que vejo, no dia seguinte, após pensar isto, vou ler o nome, Francisc...Francisca!).  Só não faço o sinal da cruz porque não sou populista. E me mata a curiosidade de saber os detalhes da tragédia. Todos pensam num  acidente ou atropelamento. Os mais antigos lembram os assassinatos nas tocaias. Ninguém aventa a hipótese de um ataque cardíaco ou cerebral. Seria broxante morrer do coração à beira da estrada. E se o finado caiu do cavalo, quebrou o pescoço? Ou morreu de canseira? Deitou pra descansar, dormiu, não acordou mais...  Mas e se fosse o ataque de uma onça? Uma cobra? Uma abelha! Foi! No Caminho da Fé, perto de Consolação, um peregrino morreu de picada de abelha. Tinha alergia, morreu. Três ou quatro abelhas, morreu ali, sem socorro. E tenho pena dos mortos cujas cruzes estão capengas abandonadas. A família se muda para longe, a cruz fica descuidada. Há cruzes que, de tão desamparadas, despertam a comiseração da população vizinha e, sem explicação, põem-se a inspirar feitos e curas inexplicáveis. Seus titulares galgam o imaginário coletivo e triunfam sobre o ostracismo familiar. Mas esse hábito de cultivar os mortos está entranhado em nós. Me emocionou o epitáfio numa cruzinha perto de Liberdade, de alguém que morreu com 28 anos, em 2006: “Se perguntarem por mim, diga que fui morar na casa do pai”.

22 - EROSÃO, TERRAÇOS E PLANTIO EM NÍVEL

Vou andando e observando a faina agrícola, agricultor de nascença que sou e alguma formação técnica que tenho. Me impressionaram pela qualidade as lavouras de café de Ibiraci e Boa Esperança e as de milho e sorgo de Pratápolis. Mas eles não plantam em nível nem constroem terraços para evitar que as águas das chuvas escorram pelo terreno e provoquem erosão do solo, práticas elementares em São Paulo. Não deve ser por ignorância ou pobreza, creio, essas lavouras citadas são altamente mecanizadas e tecnicamente cuidadas. Deve haver algum outro motivo técnico que desconheço. Até a altura de Lavras a terra é bastante argilosa e, por isso, mais resistente às enxurradas. Mas à medida que o solo vai-se tornando mais pobre em argila, que funciona como cimento, vemos o surgimento das voçorocas. Um fazendeiro de São Vicente me disse que isso se deve à burocracia da fiscalização ambiental, que exige complicadas licenças para se introduzir na fazenda um trator de esteiras. O trator de esteiras é controlado, como a moto-serra e a dinamite: ele constrói terraços para evitar a erosão, mas pode derrubar e enterrar árvores sem deixar pista.

23 - A SANTA MISSA DOMINGUEIRA.

Sendo que chego na pousada em Carrancas e a Mica, a dona, me diz que vai à missa das 7, logo mais. É domingo. Tomo banho, janto, e vou espiar a praça. Pouco antes das 7 da noite. Os alto-falantes das torres da igreja despejam música religiosa no público e no privado, numa potência que atravessa o urbano e se esvai pelo rural, nivelando por baixo todos os cidadãos crentes e descrentes. Uma musiquinha leve e doce e mole, dessas que dá vontade cantar ao ouvir pela primeira vez. Me vem à mente o romance 1984, do Orwell. Dos oito cantos da cidade, cidadãos e cidadãs - adolescentes ou velhos, em grupos ou sozinhos, casais com filhos pequenos ou idosos de mãos dadas, rapazes, moças -, dirigem-se à igreja em roupas domingueiras, como as abelhas voam para as colmeias. E eu na esquina, secando,  comovido. O mundo ainda vai longe, assim, com tanta gente simples e esperançosa e bem comportada. Constato em mim nenhuma vontade de me irmanar ao rebanho. Que não me esforço para herdar o reino do céu. Mas volto pra pousada e durmo tranquilo, porque, alheio, aposto no milagre. Sou homem de boa vontade.

24 - OS BADALOS DE CARRANCAS.

Os sinos das torres da igreja de Carrancas badalam de 15 em 15 minutos, acionados pelo relógio. 24 horas por dia. Sim, 11h15 da noite, 2h da manhã... Um acorde a cada quarto de hora, acompanhado de badaladas nas horas cheias, onze horas, onze badaladas. E as badaladas não são metálicas, são eletrônicas.  Difundem-se pelos alto-falantes. E a igreja não tem torres e creio que não há relógio algum à vista. É um relógio-ouvido. São duas torres imaginárias. Na cidade todos devem ter ótima saúde auditiva, se esta depender do silêncio da noite. É que no quarto da pousada eu só ouvia meus grilos particulares. E um acorde completo para as horas cheias e meio para as quebradas. Som de piano. Eletrônico. 32 vezes durante as sagradas 8h de sono. A surdez tem suas vantagens... Nesta cidade o padre ainda deve regular as carícias amorosas entre os fiéis na praça. E os descrentes ainda devem ser comidos por fogueiras. Descrentes e não céticos. Aqui nesta cidade a palavra cético não tem cabimento.

25 - FAZENDA ABANDONADA.

Havia saído cedo de Carrancas e tinha 44 Km para chegar a São Vicente de Minas. A estrada de terra era boa e compensava ir por ela, porque a alternativa por asfalto era muito mais longa. Então, por mais que fosse um mundo de pouca gente, sempre era demais o trânsito de veículos, para quem iria passar o dia inteiro comendo poeira. Campos e campos de pastagens nativas, cercas malcuidadas de arame farpado sustentado por estacas capengas e desalinhadas e quase nenhuma vaca ou boi, a sustentar um semiabandono doído. 
Então, lá na baixada, começou a despontar um telhado. Fui me aproximando, era a sede da fazenda, muitas janelas no casarão. Ao lado a curralama. O fazendeiro gostava de construir a curralama perto da casa, para vigiar melhor e também porque o cheiro de bosta de vaca lembrava o doce aroma da riqueza. O casarão de porão alto estava com todas as portas e mais de vinte janelas fechadas e via-se de longe que a caiação das paredes já havia caído há tempos. O capim crescia por toda parte e o bambuzal expandia-se sem nenhum desbaste. Não parei, nem olhei muito. Não fotografei. Me dá tristeza, fugi. E não queria me arriscar a registrar um fantasma.
 O fogo dirigido havia destruído a mata atlântica e o posseiro deixara a paisagem nua à disposição do capim oportunista. Qualquer cabeça de gado daria pouco trabalho e sustentaria a vida mansa e despretensiosa do caboclo. Um ranchinho de pau-a-pique na beira do corgo, vedado com paredes de taipa de varas e coberto de capim sapé. Um cavalo, uma espingarda, alguns anzóis e linhas compradas na cidade. Uma viola, uma cabocla, uma família. E o bambuzal na beira do brejo. E a terra sem preço e sem cartório.
Os caboclos mais sacudidos e menos sensíveis que conseguissem persistir e, ajudados pela condescendência da morte prematura que não levasse cedo os filhos, conseguiam ajuntar um pequeno exército familiar de mão de obra e outras tarefas menos ortodoxas. E, com a ajuda de Deus, o alinhamento adequado dos astros, e alguns safanões convenientes, arregimentar homens e agregar terras e arrebanhar reses que finalmente resultariam em dinheiro e poder. E com isso, outros homens dependentes e fiéis. E estabelecer um feudo de 2000 hectares, com suas roças de cana e milho e feijão, para a subsistência de homens e porcos, que havia muitos no chiqueiro. De comprar, só sal e alguns metros de tecido de algodão, para fabricação própria do que vestir.
Dois mil hectares de terra corresponde a sete quilômetros de comprido na estrada, levando o vale inteiro até onde a vista alcança, de espigão a espigão. O fazendeiro já velho gostava de olhar pela janela alta do casarão – que era um casarão sem varanda – e não avistar terra alheia. Ver a fartura de galinhas e patos no quintal e o cercado da ceva cheio de porco gordo. O canteiro de couve lá no fundo e o arrozal cacheando ali na vereda do brejo, que era uma família sofisticada e já comia arroz... E gado mugindo por todo lado, e peões em seus cavalos lisos a tangê-los. Toda a vizinhança era constituída de súditos e serviçais. Com os quais pescara, caçara, tomara cachaça e sapateara catira quando moço.
E agora os filhos, cada um mais fraco que o outro, a morar na cidade para estudar. Uns montando banca de advogado, outros de médico, uma filha professora, ele cada vez mais cansado, e nenhum sucessor à vista. Mas, macho, sustentou até morrer. A viúva, que nunca fora dona de si, foi levada pra cidade, e o capim começou a crescer à beira da cisterna e no caminho pro mangueiro. Enquanto a fileira de janelas de ambos os lados e as portas da cinquentenária morada eram fechadas para sempre, para regozijo das aranhas e outros insetos e animais sorrateiros. Eis que tudo que é sólido se acaba comido pelo tempo, sufocado pelo capim, esquecido à beira de um brejo. Fugi. E por uns 5 Km foi-me muito penosa a caminhada, porque não tem nada mais cansativo que a tristeza. E se escrevo esta crônica, é apenas para cumprir o dever de repórter. 

26 - A ARTE DE PESCAR CARONA

O sol rachava mamona. Lá embaixo corria o Rio Grande, dava pra ver a ponte. Na colina oposta modorrava a zona urbana de Madre de Deus. Eu sentado à beira do asfalto, pedindo carona para Piedade. Às vezes o mundo sabe ser bom. Nas MGs e BRs vou de ônibus. Ou de carona. Só ando nas vicinais. Estava difícil, poucos carros passando e quem passava não parava. Pedir carona é como pescar. Tem de ter paciência, perseverança e fé. E nenhum horário.
De repente, dois concorrentes se instalam cem metros antes. Agora que estou lascado, pensei. Agora só me resta torcer por eles, que sejam levados o mais rápido possível. Sacanagem. Quem se coloca na via pública tem de estar preparado para praticar o altruísmo.
Estou fragilizado, não sei se quero ou não quero pegar carona rápido. É cedo. É que tenho roupa secando sobre a mochila estendida no asfalto, servindo de varal, aquela que não secou na noite anterior, cueca,  meia, camiseta. Mais uns 15 minutos nesse sol e estarão secas. Levanto o dedão sem convicção. Isso é fatal. Um vendedor, assim como um pedinte de carona, precisa mostrar convicção. Os concorrentes conseguirão rápido, penso, estão mais que convictos, estão entusiasmados com o fato de que irão inapelavelmente de carona para Piedade. Um caminhão para, eles entram. Exulto. Recolho as roupas secas, arregaço as mangas, fico de pé e, pra garantir, ocupo a posição que meus concorrentes ocupavam há pouco. É uma posição testada e aprovada. A arte de pedir carona tem suas minúcias. Dez metros pra cá ou pra lá podem determinar o sucesso ou o insucesso da obra. É preciso se colocar no lugar do motorista e imaginar a direção do seu olhar e a sua palpitação cardíaca em cada ponto da zona de carona. Porque há as zonas de carona nas estradas. Fora delas você fica mofando o dia inteiro, nem adianta, não tem entusiasmo que dê jeito.
Vou à luta, crente. Dez minutos. O Fiat Mille para. Há três homens dentro. Vam’bora! Só se eu fosse macaco novo pra não aceitar a oferenda dos três homens. Três homens com cara de carola. Desconfio do motorista, parece padre. Perigo só existe para quem não tem fé. Quem se estabelece não pode escolher freguês. São de Santana do Garambéu, cidade em que eu chegaria no dia seguinte e pernoitaria. E acrescento que de Piedade em diante – onde o rio faz a curva -, não aceitaria mais caronas.
 E o motorista que parecia padre era mineiro desconfiado(pleonasmo): na tarde do dia seguinte foi conferir se eu estava lá no hotel em Santana. E não sei se por capricho ou por coincidência, passou por mim na saída de Santana para Bom Jardim, oferecendo carona sorrindo, sabendo que eu não deveria aceitar. De Piedade em diante, no sentido nordeste – sudoeste, recebendo o sol da manhã na face esquerda. Vida lôca.

27 - PIEDADE AO PÃO DE PIEDADE.

O pão de Piedade do Rio Grande é fabricado em Longe de Deus, MG. Só pode ser, porque é um pão vagabundo, daquele que só tem vento, quebradiço, parecendo biscoito de polvilho desses sem peso, que derretem na boca. Fui a três padarias e sempre a mesma coisa. Acredito em espírito da terra. Assim como o café que se bebe em Minas é o mesmo em toda parte, assim é o pão que se encontra em Piedade. É um espírito local, porque nas cidades vizinhas o pão é bom. E os padeiros são incompetentes e formais. A dona da padaria em que fui comprar os sanduíches da jornada estrilou quando pedi que cortasse nove fatias de mortadela e colocasse em três pães. Quis me entregar a mortadela e os pães separados. Não, eu queria já juntos. Ela voltou e cortou os pães ao meio, como se o meu problema fosse abrir os pães. Não, eu queria uma coisa dentro da outra, pronta pra ser comida, ela não estava me vendo? Será que eu me parecia com um pacato cidadão em busca do pão para o café da manhã na mesa da cozinha? Não, isso ela não fazia, ela fazia sanduíches de mortadela... Não tem coisa mais enroscada do que um burocrata puro. Se ela desconfiasse que meu principal quesito de avaliação de um povo é a qualidade e o atendimento de sua padaria... E a dura verdade é que não se faz mais roscas doces como antigamente. Em nenhum lugar do mundo!

28 - ZÉ MANOEL DE SANTANA

Bar e restaurante. E Hotel. E o Zé Manoel que trabalha no balcão, na cozinha e na portaria. E serve as mesas, e cobra e dá troco e administra os pedreiros que trabalham na ampliação do negócio. Zé Manoel é sergipano. Porque fala otcho. Burocracia nenhuma. Cheguei, pedi, ele me mostrou o quarto, nem quis saber meu nome. Em Passos e Boa Esperança, cidades maiores, me pediram documentos, preencheram fichas, queriam saber a profissão, tive de assinar, coisa demorada.
Desci pra jantar no restaurante, que  também é boteco, única alternativa aos bebuns da cidade após as 7h da noite. Jantar num restaurante naquela cidade era um fato inusitado, a julgar pelo olhar dos oito homens que petiscavam e bebiam de  pé próximo ao balcão. Uma algaravia, tem hora que é bom ser surdo. Do lado de dentro, Zé Manoel também jantava com um prato sobre o balcão,  interrompendo a toda hora para atender a freguesia ou participar da conversa banal e etílica. Zé Manoel, de meia idade e pança protuberante.

Ali, tudo orbita a personalidade despachada do nordestino Zé Manoel, desde a arquitetura do prédio, que ele vai construindo aos poucos, até a informalidade das relações, passando pelo cardápio e as toalhas plásticas sobre as mesas. Quando ele morrer, não sobra nada.

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