![]() |
Cruz de beira de estrada, de morto de família pobre ou desleixada. |
21 - MORTES NA ESTRADA: CRUZES.
Na viagem vejo muitas cruzes fincadas ao
lado do caminho. Nelas escrito o nome do finado e as datas de nascimento e
morte. Até hoje nunca vi o nome de uma mulher. E olha que leio todos. Por que
as mulheres não morrem à beira da estrada?(a primeira cruz que vejo, no dia
seguinte, após pensar isto, vou ler o nome, Francisc...Francisca!). Só não faço o sinal da cruz porque não sou
populista. E me mata a curiosidade de saber os detalhes da tragédia. Todos
pensam num acidente ou atropelamento. Os
mais antigos lembram os assassinatos nas tocaias. Ninguém aventa a hipótese de
um ataque cardíaco ou cerebral. Seria broxante morrer do coração à beira da
estrada. E se o finado caiu do cavalo, quebrou o pescoço? Ou morreu de
canseira? Deitou pra descansar, dormiu, não acordou mais... Mas e se fosse o ataque de uma onça? Uma
cobra? Uma abelha! Foi! No Caminho da Fé, perto de Consolação, um peregrino
morreu de picada de abelha. Tinha alergia, morreu. Três ou quatro abelhas,
morreu ali, sem socorro. E tenho pena dos mortos cujas cruzes estão capengas
abandonadas. A família se muda para longe, a cruz fica descuidada. Há cruzes
que, de tão desamparadas, despertam a comiseração da população vizinha e, sem
explicação, põem-se a inspirar feitos e curas inexplicáveis. Seus titulares galgam
o imaginário coletivo e triunfam sobre o ostracismo familiar. Mas esse hábito
de cultivar os mortos está entranhado em nós. Me emocionou o epitáfio numa
cruzinha perto de Liberdade, de alguém que morreu com 28 anos, em 2006: “Se
perguntarem por mim, diga que fui morar na casa do pai”.
22 - EROSÃO, TERRAÇOS E PLANTIO EM NÍVEL
Vou andando e observando a faina
agrícola, agricultor de nascença que sou e alguma formação técnica que tenho.
Me impressionaram pela qualidade as lavouras de café de Ibiraci e Boa Esperança
e as de milho e sorgo de Pratápolis. Mas eles não plantam em nível nem
constroem terraços para evitar que as águas das chuvas escorram pelo terreno e
provoquem erosão do solo, práticas elementares em São Paulo. Não deve ser por
ignorância ou pobreza, creio, essas lavouras citadas são altamente mecanizadas
e tecnicamente cuidadas. Deve haver algum outro motivo técnico que desconheço.
Até a altura de Lavras a terra é bastante argilosa e, por isso, mais resistente
às enxurradas. Mas à medida que o solo vai-se tornando mais pobre em argila,
que funciona como cimento, vemos o surgimento das voçorocas. Um fazendeiro de
São Vicente me disse que isso se deve à burocracia da fiscalização ambiental,
que exige complicadas licenças para se introduzir na fazenda um trator de
esteiras. O trator de esteiras é controlado, como a moto-serra e a dinamite:
ele constrói terraços para evitar a erosão, mas pode derrubar e enterrar
árvores sem deixar pista.
23 - A SANTA MISSA DOMINGUEIRA.
Sendo que chego na pousada em Carrancas
e a Mica, a dona, me diz que vai à missa das 7, logo mais. É domingo. Tomo
banho, janto, e vou espiar a praça. Pouco antes das 7 da noite. Os alto-falantes
das torres da igreja despejam música religiosa no público e no privado, numa
potência que atravessa o urbano e se esvai pelo rural, nivelando por baixo
todos os cidadãos crentes e descrentes. Uma musiquinha leve e doce e mole,
dessas que dá vontade cantar ao ouvir pela primeira vez. Me vem à mente o
romance 1984, do Orwell. Dos oito cantos da cidade, cidadãos e cidadãs -
adolescentes ou velhos, em grupos ou sozinhos, casais com filhos pequenos ou idosos
de mãos dadas, rapazes, moças -, dirigem-se à igreja em roupas domingueiras,
como as abelhas voam para as colmeias. E eu na esquina, secando, comovido. O mundo ainda vai longe, assim, com
tanta gente simples e esperançosa e bem comportada. Constato em mim nenhuma
vontade de me irmanar ao rebanho. Que não me esforço para herdar o reino do
céu. Mas volto pra pousada e durmo tranquilo, porque, alheio, aposto no
milagre. Sou homem de boa vontade.
24 - OS BADALOS DE CARRANCAS.
Os sinos das torres da igreja de
Carrancas badalam de 15 em 15 minutos, acionados pelo relógio. 24 horas por
dia. Sim, 11h15 da noite, 2h da manhã... Um acorde a cada quarto de hora,
acompanhado de badaladas nas horas cheias, onze horas, onze badaladas. E as
badaladas não são metálicas, são eletrônicas.
Difundem-se pelos alto-falantes. E a igreja não tem torres e creio que
não há relógio algum à vista. É um relógio-ouvido. São duas torres imaginárias.
Na cidade todos devem ter ótima saúde auditiva, se esta depender do silêncio da
noite. É que no quarto da pousada eu só ouvia meus grilos particulares. E um
acorde completo para as horas cheias e meio para as quebradas. Som de piano.
Eletrônico. 32 vezes durante as sagradas 8h de sono. A surdez tem suas
vantagens... Nesta cidade o padre ainda deve regular as carícias amorosas entre
os fiéis na praça. E os descrentes ainda devem ser comidos por fogueiras.
Descrentes e não céticos. Aqui nesta cidade a palavra cético não tem cabimento.
25 - FAZENDA ABANDONADA.
Havia saído cedo de Carrancas e tinha 44
Km para chegar a São Vicente de Minas. A estrada de terra era boa e compensava
ir por ela, porque a alternativa por asfalto era muito mais longa. Então, por
mais que fosse um mundo de pouca gente, sempre era demais o trânsito de
veículos, para quem iria passar o dia inteiro comendo poeira. Campos e campos
de pastagens nativas, cercas malcuidadas de arame farpado sustentado por
estacas capengas e desalinhadas e quase nenhuma vaca ou boi, a sustentar um
semiabandono doído.
Então, lá na baixada, começou a despontar
um telhado. Fui me aproximando, era a sede da fazenda, muitas janelas no
casarão. Ao lado a curralama. O fazendeiro gostava de construir a curralama
perto da casa, para vigiar melhor e também porque o cheiro de bosta de vaca
lembrava o doce aroma da riqueza. O casarão de porão alto estava com todas as
portas e mais de vinte janelas fechadas e via-se de longe que a caiação das
paredes já havia caído há tempos. O capim crescia por toda parte e o bambuzal
expandia-se sem nenhum desbaste. Não parei, nem olhei muito. Não fotografei. Me
dá tristeza, fugi. E não queria me arriscar a registrar um fantasma.
O
fogo dirigido havia destruído a mata atlântica e o posseiro deixara a paisagem
nua à disposição do capim oportunista. Qualquer cabeça de gado daria pouco
trabalho e sustentaria a vida mansa e despretensiosa do caboclo. Um ranchinho
de pau-a-pique na beira do corgo, vedado com paredes de taipa de varas e
coberto de capim sapé. Um cavalo, uma espingarda, alguns anzóis e linhas
compradas na cidade. Uma viola, uma cabocla, uma família. E o bambuzal na beira
do brejo. E a terra sem preço e sem cartório.
Os caboclos mais sacudidos e menos
sensíveis que conseguissem persistir e, ajudados pela condescendência da morte
prematura que não levasse cedo os filhos, conseguiam ajuntar um pequeno
exército familiar de mão de obra e outras tarefas menos ortodoxas. E, com a
ajuda de Deus, o alinhamento adequado dos astros, e alguns safanões
convenientes, arregimentar homens e agregar terras e arrebanhar reses que finalmente
resultariam em dinheiro e poder. E com isso, outros homens dependentes e fiéis.
E estabelecer um feudo de 2000 hectares, com suas roças de cana e milho e
feijão, para a subsistência de homens e porcos, que havia muitos no chiqueiro.
De comprar, só sal e alguns metros de tecido de algodão, para fabricação
própria do que vestir.
Dois mil hectares de terra corresponde a
sete quilômetros de comprido na estrada, levando o vale inteiro até onde a
vista alcança, de espigão a espigão. O fazendeiro já velho gostava de olhar
pela janela alta do casarão – que era um casarão sem varanda – e não avistar
terra alheia. Ver a fartura de galinhas e patos no quintal e o cercado da ceva
cheio de porco gordo. O canteiro de couve lá no fundo e o arrozal cacheando ali
na vereda do brejo, que era uma família sofisticada e já comia arroz... E gado
mugindo por todo lado, e peões em seus cavalos lisos a tangê-los. Toda a
vizinhança era constituída de súditos e serviçais. Com os quais pescara,
caçara, tomara cachaça e sapateara catira quando moço.
E agora os filhos, cada um mais fraco
que o outro, a morar na cidade para estudar. Uns montando banca de advogado,
outros de médico, uma filha professora, ele cada vez mais cansado, e nenhum
sucessor à vista. Mas, macho, sustentou até morrer. A viúva, que nunca fora
dona de si, foi levada pra cidade, e o capim começou a crescer à beira da
cisterna e no caminho pro mangueiro. Enquanto a fileira de janelas de ambos os
lados e as portas da cinquentenária morada eram fechadas para sempre, para
regozijo das aranhas e outros insetos e animais sorrateiros. Eis que tudo que é
sólido se acaba comido pelo tempo, sufocado pelo capim, esquecido à beira de um
brejo. Fugi. E por uns 5 Km foi-me muito penosa a caminhada, porque não tem
nada mais cansativo que a tristeza. E se escrevo esta crônica, é apenas para
cumprir o dever de repórter.
26 - A ARTE DE PESCAR CARONA
O sol rachava mamona. Lá embaixo corria
o Rio Grande, dava pra ver a ponte. Na colina oposta modorrava a zona urbana de
Madre de Deus. Eu sentado à beira do asfalto, pedindo carona para Piedade. Às
vezes o mundo sabe ser bom. Nas MGs e BRs vou de ônibus. Ou de carona. Só ando
nas vicinais. Estava difícil, poucos carros passando e quem passava não parava.
Pedir carona é como pescar. Tem de ter paciência, perseverança e fé. E nenhum
horário.
De repente, dois concorrentes se
instalam cem metros antes. Agora que estou lascado, pensei. Agora só me resta
torcer por eles, que sejam levados o mais rápido possível. Sacanagem. Quem se
coloca na via pública tem de estar preparado para praticar o altruísmo.
Estou fragilizado, não sei se quero ou
não quero pegar carona rápido. É cedo. É que tenho roupa secando sobre a
mochila estendida no asfalto, servindo de varal, aquela que não secou na noite
anterior, cueca, meia, camiseta. Mais
uns 15 minutos nesse sol e estarão secas. Levanto o dedão sem convicção. Isso é
fatal. Um vendedor, assim como um pedinte de carona, precisa mostrar convicção.
Os concorrentes conseguirão rápido, penso, estão mais que convictos, estão
entusiasmados com o fato de que irão inapelavelmente de carona para Piedade. Um
caminhão para, eles entram. Exulto. Recolho as roupas secas, arregaço as
mangas, fico de pé e, pra garantir, ocupo a posição que meus concorrentes
ocupavam há pouco. É uma posição testada e aprovada. A arte de pedir carona tem
suas minúcias. Dez metros pra cá ou pra lá podem determinar o sucesso ou o
insucesso da obra. É preciso se colocar no lugar do motorista e imaginar a
direção do seu olhar e a sua palpitação cardíaca em cada ponto da zona de
carona. Porque há as zonas de carona nas estradas. Fora delas você fica mofando
o dia inteiro, nem adianta, não tem entusiasmo que dê jeito.
Vou à luta, crente. Dez minutos. O Fiat
Mille para. Há três homens dentro. Vam’bora! Só se eu fosse macaco novo pra não
aceitar a oferenda dos três homens. Três homens com cara de carola. Desconfio
do motorista, parece padre. Perigo só existe para quem não tem fé. Quem se
estabelece não pode escolher freguês. São de Santana do Garambéu, cidade em que
eu chegaria no dia seguinte e pernoitaria. E acrescento que de Piedade em
diante – onde o rio faz a curva -, não aceitaria mais caronas.
E
o motorista que parecia padre era mineiro desconfiado(pleonasmo): na tarde do
dia seguinte foi conferir se eu estava lá no hotel em Santana. E não sei se por
capricho ou por coincidência, passou por mim na saída de Santana para Bom
Jardim, oferecendo carona sorrindo, sabendo que eu não deveria aceitar. De
Piedade em diante, no sentido nordeste – sudoeste, recebendo o sol da manhã na
face esquerda. Vida lôca.
27 - PIEDADE AO PÃO DE PIEDADE.
O pão de Piedade do Rio Grande é
fabricado em Longe de Deus, MG. Só pode ser, porque é um pão vagabundo, daquele
que só tem vento, quebradiço, parecendo biscoito de polvilho desses sem peso,
que derretem na boca. Fui a três padarias e sempre a mesma coisa. Acredito em
espírito da terra. Assim como o café que se bebe em Minas é o mesmo em toda
parte, assim é o pão que se encontra em Piedade. É um espírito local, porque
nas cidades vizinhas o pão é bom. E os padeiros são incompetentes e formais. A
dona da padaria em que fui comprar os sanduíches da jornada estrilou quando
pedi que cortasse nove fatias de mortadela e colocasse em três pães. Quis me
entregar a mortadela e os pães separados. Não, eu queria já juntos. Ela voltou
e cortou os pães ao meio, como se o meu problema fosse abrir os pães. Não, eu
queria uma coisa dentro da outra, pronta pra ser comida, ela não estava me
vendo? Será que eu me parecia com um pacato cidadão em busca do pão para o café
da manhã na mesa da cozinha? Não, isso ela não fazia, ela fazia sanduíches de
mortadela... Não tem coisa mais enroscada do que um burocrata puro. Se ela desconfiasse
que meu principal quesito de avaliação de um povo é a qualidade e o atendimento
de sua padaria... E a dura verdade é que não se faz mais roscas doces como
antigamente. Em nenhum lugar do mundo!
28 - ZÉ MANOEL DE SANTANA
Bar e restaurante. E Hotel. E o Zé
Manoel que trabalha no balcão, na cozinha e na portaria. E serve as mesas, e
cobra e dá troco e administra os pedreiros que trabalham na ampliação do
negócio. Zé Manoel é sergipano. Porque fala otcho. Burocracia nenhuma. Cheguei,
pedi, ele me mostrou o quarto, nem quis saber meu nome. Em Passos e Boa
Esperança, cidades maiores, me pediram documentos, preencheram fichas, queriam
saber a profissão, tive de assinar, coisa demorada.
Desci pra jantar no restaurante,
que também é boteco, única alternativa
aos bebuns da cidade após as 7h da noite. Jantar num restaurante naquela cidade
era um fato inusitado, a julgar pelo olhar dos oito homens que petiscavam e
bebiam de pé próximo ao balcão. Uma algaravia,
tem hora que é bom ser surdo. Do lado de dentro, Zé Manoel também jantava com
um prato sobre o balcão, interrompendo a
toda hora para atender a freguesia ou participar da conversa banal e etílica.
Zé Manoel, de meia idade e pança protuberante.
Ali, tudo orbita a personalidade despachada
do nordestino Zé Manoel, desde a arquitetura do prédio, que ele vai construindo
aos poucos, até a informalidade das relações, passando pelo cardápio e as
toalhas plásticas sobre as mesas. Quando ele morrer, não sobra nada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário