quarta-feira, 17 de junho de 2015

Almas penadas e outros fantasmas.

ASSOMBRAÇÃO.
Sombras à beira da estrada, antes da grota onde passa o Rio Grande, depois de Piedade.

Aqui na artificial luminosidade do meu lar, recordo de certos lugares em que passei e fico pasmo de não ter me encontrado com nenhum fantasma. Acho que só não vi porque passei fora do horário. Ou porque estava ocupado demais com coisas terrenas. Mas teria visto se tivesse passado a pé na capela do Espírito Santo, a caminho de São Vicente. Passei de carro e apenas vislumbrei a quantidade de embalagens e outros lixos deixados pela festa de arromba da véspera, em homenagem ao Divino. Ao lado do Buraco do Inferno, antes de Bom Jardim, também passei de carro. Ali eu passaria andando, já no escuro, caso não tivesse pegado carona. E teria visto lá embaixo a luzinha da brasa do cachimbo do velho ancestral a pitar enquanto alisava uma jaguatirica. E os discos voadores no topo do Mirantão? Ali não é longe de Varginha (lembram do ET de Varginha?) e o terreno bem regular e limpo em que passei a noite, a se destacar no pontilhado de cumes da Mantiqueira, certamente é passagem de alienígenas, que se sentem seguros longe das vistas de qualquer terráqueo.
Talvez eu não tenha visto porque não estava devidamente avisado. O andarilho de longas distâncias, por dias a fio, conversa pouco com o povo local. Não tem a paciência de encostar a pança no balcão de uma venda de vila e aguardar a dissipação da poeira provocada por sua inusitada aparição. E tomar uma cachaça desembaraçante com aquele velho ensimesmado a enrolar um palheiro que o espia de esguelho. E então ser avisado de locais e horários em que se veem luzes implausíveis e se ouvem gemidos de nenhuma garganta. Porque todas as almas penadas de noivas e boiadeiros e crianças e alguns santos menos ortodoxos que pululam em horas impróprias por aqueles sertões saem da literatura oral desses velhos que nunca ultrapassaram um raio de cinquenta quilômetros de onde nasceram.
E ainda aqui, na tela do desktop, nas virtuais redes de amigos de variados jargões, sou bombardeado por crendices pós-modernas. Não há mais velhos. Os velhos estão mortos. Há jovens que nunca arredaram pé do próprio quarto em que cresceram, a cortar e colar mulas-sem-cabeça reais registradas em milhares de pixels. Convenientes caiporas a informar e contrainformar produtos comerciais em disputa de mercado:  se você cozinhar assim e embalar assado, terá câncer; se você usar aquilo e desusar isso, terá vida longa; manga com pepino é morte certa; berinjela faz bem; comer à noite..., um copo de vinho todo dia..., cenoura é bom pra tosse... Pesquisa realizada pela Universidade de Godmyliv descobriu que... Use sempre produtos desse selo, daquela origem, siga os 14 passos para o sucesso e reze, porque o fim está próximo.

Cientistas populistas substituem velhos sábios, palestrantes substituem pastores e psicanalistas cobram para conversar com gente que só interage virtualmente. Ninguém mais reza, mas cada vez mais somos avisados por novos profetas. Nunca seguimos tantos dogmas e toda semana se anuncia um apocalipse. É uma assombração atrás da outra a nos dispersar. Então começo a pensar na próxima fuga.

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