ASSOMBRAÇÃO.
Sombras à beira da estrada, antes da grota onde passa o Rio Grande, depois de Piedade. |
Aqui na artificial luminosidade do meu lar, recordo de
certos lugares em que passei e fico pasmo de não ter me encontrado com nenhum
fantasma. Acho que só não vi porque passei fora do horário. Ou porque estava
ocupado demais com coisas terrenas. Mas teria visto se tivesse passado a pé na
capela do Espírito Santo, a caminho de São Vicente. Passei de carro e apenas
vislumbrei a quantidade de embalagens e outros lixos deixados pela festa de
arromba da véspera, em homenagem ao Divino. Ao lado do Buraco do Inferno, antes
de Bom Jardim, também passei de carro. Ali eu passaria andando, já no escuro,
caso não tivesse pegado carona. E teria visto lá embaixo a luzinha da brasa do
cachimbo do velho ancestral a pitar enquanto alisava uma jaguatirica. E os
discos voadores no topo do Mirantão? Ali não é longe de Varginha (lembram do ET
de Varginha?) e o terreno bem regular e limpo em que passei a noite, a se
destacar no pontilhado de cumes da Mantiqueira, certamente é passagem de
alienígenas, que se sentem seguros longe das vistas de qualquer terráqueo.
Talvez eu não tenha visto porque não estava
devidamente avisado. O andarilho de longas distâncias, por dias a fio, conversa
pouco com o povo local. Não tem a paciência de encostar a pança no balcão de
uma venda de vila e aguardar a dissipação da poeira provocada por sua inusitada
aparição. E tomar uma cachaça desembaraçante com aquele velho ensimesmado a
enrolar um palheiro que o espia de esguelho. E então ser avisado de locais e
horários em que se veem luzes implausíveis e se ouvem gemidos de nenhuma
garganta. Porque todas as almas penadas de noivas e boiadeiros e crianças e
alguns santos menos ortodoxos que pululam em horas impróprias por aqueles
sertões saem da literatura oral desses velhos que nunca ultrapassaram um raio
de cinquenta quilômetros de onde nasceram.
E ainda aqui, na tela do desktop, nas virtuais redes
de amigos de variados jargões, sou bombardeado por crendices pós-modernas. Não
há mais velhos. Os velhos estão mortos. Há jovens que nunca arredaram pé do
próprio quarto em que cresceram, a cortar e colar mulas-sem-cabeça reais
registradas em milhares de pixels. Convenientes caiporas a informar e
contrainformar produtos comerciais em disputa de mercado: se você cozinhar assim e embalar assado, terá
câncer; se você usar aquilo e desusar isso, terá vida longa; manga com pepino é
morte certa; berinjela faz bem; comer à noite..., um copo de vinho todo dia...,
cenoura é bom pra tosse... Pesquisa realizada pela Universidade de Godmyliv
descobriu que... Use sempre produtos desse selo, daquela origem, siga os 14
passos para o sucesso e reze, porque o fim está próximo.
Cientistas populistas substituem velhos sábios,
palestrantes substituem pastores e psicanalistas cobram para conversar com
gente que só interage virtualmente. Ninguém mais reza, mas cada vez mais somos
avisados por novos profetas. Nunca seguimos tantos dogmas e toda semana se
anuncia um apocalipse. É uma assombração atrás da outra a nos dispersar. Então
começo a pensar na próxima fuga.
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