Ponte sobre o Rio Grande, entre Passos e São João Batista do Glória, MG. |
6 - EM IBIRACI, TODO MUNDO É NÉRSO.
É que Capetinga fica ao lado, é
município vizinho. Na região, todo mundo tem o sotaque e o vocabulário do Nérso
da Capitinga. Dizem que o comediante é baiano, mas deve ter copiado o sotaque
dessa região. Mais estranho é ver as mulheres falando daquele jeito. É uma
mistura de português arcaico com economia fonética, como a troca do b pelo v(assobio/assovio;
bassoura/vassoura; brabo/bravo), do r pelo l e vice-versa, como pomal para
pomar e laranjar para laranjal; é uma tendência a abreviar as proparoxítonas,
como corgo para córrego, arve para árvore, bebo para bêbado, setmo para sétimo,
sabdo para sábado; é a mais deslavada economia, como cê para você e a
eliminação dos plurais. E é a revolução linguística da simplificação verbal:
por ex., o verbo comer, no presente do indicativo, tem apenas uma forma:
“come”. A gente come (para eu como), tu come, ele come, nois come, vóis come,
eles come. O verbo fazer: a gente faiz, tu faiz, ele faiz, nóis faiz, vóis
faiz, eles faiz. E na linguagem culta desse povo, só se usa a terceira pessoa:
“a gente” é pronome da 1ª pessoa, tanto do singular, quanto do plural, e se
conjuga com o verbo na 3ª pessoa do singular; e “você(s)” é pronome da 2ª
pessoa, que também se conjuga com o verbo na 3ª pessoa. Pensando bem, acho que
o Nérso colheu café em Ibiraci.
7 - AO SUL DO RIO GRANDE, TODO MUNDO É
PAULISTA.
Se eu fosse mais pernóstico bairrista
chauvinista, reivindicaria todo o território ao sul do Rio Grande para São
Paulo. Até a nascente, lá perto de Resende, Rio de Janeiro (e se isso tivesse
qualquer importância, eis que no Brasil a Federação é apenas teórica, não tem
sentido prático. Ex.: os estudantes de Mirantão MG estudam em Visconde de Mauá
RJ sem nenhuma burocracia). Tive essa ideia quando estava caminhando entre São
João Batista do Glória e a MG-050, ao norte do rio, nas bordas da Serra da
Canastra, onde nasce o São Francisco. Eu olhava para a outra margem do rio, e
não me acostumava com a ideia de que lá ainda era Minas e não São Paulo.
Porque, para mim, do noroeste paulista, Rio Grande é sinônimo de divisa entre
SP e MG. E aquele povo todo falando mais caipira que os mais legítimos caipiras
de Tietê ou Piracicaba? O sul de Minas é paulista. Na hora do vamovê, da
precisão, todos correm pra São Paulo e não pra Belo Horizonte. E veja se a soma
de palmeirenses, santistas, corintianos e sãopaulinos não é maior que a de
atleticanos e cruzeirenses e americanos. No mínimo, essa nova disposição
territorial restabeleceria a política do café com leite. Pois do jeito atual, Minas
está com o café e com o leite.
8 - A ALIMENTAÇÃO TÍPICA DO ANDARILHO.
Nunca tive a paciência de calcular
quantas calorias se gasta pra caminhar 50 Km num dia, carregando 12 Kg nas
costas, subindo e descendo morros. Mas sei bem o quê e quanto se precisa comer
para não faltar nem sobrar (eis que entrei e saí com o mesmo peso dessa
empreitada). Pela manhã, um copo grande de leite com café quente e dois pães
com manteiga. Ao longo do dia, 3 sanduíches de mortadela, levados para comer no
caminho – comendo e andando, bem distribuídos no período. Ao final do dia,
comida caseira completa, arroz, feijão, etc. Em algumas situações, isso se
invertia. Almoço completo e sanduíches no jantar, especialmente quando ia
dormir na barraca. E água a toda hora. Cerca de 4 litros por dia, variando
conforme o calor e a sudorese. Quando tinha oportunidade, comprava alguma
banana pra comer imediatamente.
9 - O MEU RIO GRANDE.
Descobri decepcionado que o meu Rio
Grande não é tão grande assim, quando comparado com outros rios. Só na Amazônia
há uns dez maiores. O próprio Rio Grande, que separa o México dos EUA, é muito
mais longo e provavelmente mais volumoso em média. Aliás, é incrível a falta de criatividade do povo na
denominação dos rios. Descubro estupefato Rios Grandes por todo lado, aqui
mesmo na grande São Paulo há um Rio Grande, formador da Billings. É Rio Grande,
Rio Pequeno, Rio Bonito, Rio Turvo, Rio Verde, Rio Preto, Rio Pardo, Rio
Dourado, Rio Cachoeirinha, Rio Capivari, Rio das Pedras pra todo lado. Mas
pomposo é o nome do corgo que banha o povoado de Mirantão, no coração da
Mantiqueira: Rio da Prata. Sendo que é muito barulhento de corredeiras, ao
contrário do homônimo portenho. Mas a decepção maior vem por conta da pendenga
entre o Rio Grande e o Paranaíba. Segundo os mapas, esses dois rios se juntam
para formar o Rio Paraná. O Rio Paranaíba é mais curto que o Rio Grande, mas
deve ter maior volume d’água na foz, pois drena uma bacia muito maior. E alguns
geógrafos advogam a ideia de que o Paranaíba é o próprio Paraná. Nesse caso, o
Rio Grande seria apenas um afluente! Isso é quase insuportável às minhas
crenças imorredouras. E qual o melhor critério para estabelecer o tamanho de um
rio: o percurso ou o volume d’água? (se for o volume d’água, medido onde?
Porque nem sempre o volume d’água na foz é o maior de um rio, sabiam? E
lembrando que os rios Grande e Paranaíba não têm mais foz. O lago de Ilha
Solteira cobriu tudo). O fato é que, frias considerações à parte, e independente de qualquer parâmetro, o meu
Rio Grande é realmente muito grande. É o rio mais grande da minha aldeia.
10 - AS MISÉRIAS DOS HOTÉIS BARATOS.
Evidente que nem cogito a ideia de ficar
num hotel caro. Porque creio que o principal produto dos hotéis caros é a
mordomia, enquanto o dos hotéis baratos é a estadia. E gosto de empregar meu
dinheiro no que preciso. E quando estou caminhando, preciso à noite apenas de
um lugar mínimo para descansar o corpo e um banheiro para limpar a pele e lavar
a roupa. E isso qualquer hotel oferece.
Só que no hotel de Passos, o dono era um
casal de mais de 80 anos, que estava sentado num sofá na recepção, como se
fosse hóspede, a vigiar disfarçadamente o recepcionista e o negócio. Sabe
aqueles empreendedores sem fé? Era. O recepcionista das 8h da noite era o mesmo
das 5h da manhã do dia seguinte. Expediente de 24h. 366 dias por ano.. Quis receber
adiantado. Precisei pedir a toalha. Que era ridícula. Fiquei com preguiça de
pedir sabonete. Usei meu sabão de lavar roupa. Horrível a qualidade dos
materiais usados na construção do quarto e do banheiro. Tudo ponta de estoque
do standard do standard. E muita coisa funcionando em gambiarras. Fios,
tomadas, espelhos, ligações hidráulicas...azulejos, torneiras, sanitários,
chuveiros, portas. A miséria de apenas uma tomada elétrica, sendo que
atualmente os viajantes levam vários gadgets elétricos que precisam recarregar
durante a noite. Eu levava lanterna e celular. O café da manhã ficava pronto a
partir das 4h30, me informou o funcionário. Desconfiei. É que era ao pé da
letra. Era apenas um café na manhã, na garrafa térmica. Um café preto. Mas
amarelo de fraco. Como todo café que encontrei pelo caminho. Isso é certo,
porém não confirmado, porque achei um desaforo tão grande que sequer toquei na
garrafa. Entrei direto na primeira padaria. Mas não deve ser por economia esse
tradicional café fraco dos mineiros. O estado é o maior produtor de grãos. Ou
por isso mesmo: eles conhecem e sentem na carne o custo de produzi-lo. Deve ser
por isso que os italianos fazem o café mais caprichado do planeta. Eles nunca
produziram um grão. Mas justiça seja feita: em Minas, o que o café tem de ruim,
a pinga tem de boa.
No hotel de Capitólio a construção era
boa, mas os lençóis eram curtos. Bons,
mas curtos. E algo que me irrita é lençol que descobre o colchão quando
dormimos. Não é o lençol que fica por cima curto que me irrita, como vocês
pensaram, mas o de forrar.
Interessante é que qualquer hotelzinho,
agora, tem wi-fi. E televisão. O porteiro, orgulhoso, nos passa logo o controle remoto, que deve
ser devolvido na saída. Como se o fato de haver um aparelho vagabundo de TV no
quarto fosse indício de alta categoria do estabelecimento.
A mesquinhez maior se dá nesses hotéis
localizados em cidades maiores, tocados por empregados. Nos povoados e cidades
menores, eles são operados pelos próprios donos, normalmente a mulher, cuja
família mora no próprio estabelecimento. Como não costuma haver restaurantes no
comércio dessas vilas, os hotéis oferecem também as refeições. Que costumam ficar
dispostas em panelas sobre o fogão a lenha, em que nos servimos à vontade.
Junto com os membros da família. Esse ambiente sadio compensa todas as mazelas.
11 - O PROBLEMA DA HOSPEDAGEM DO
ANDARILHO.
O andarilho é um sujeito exótico no
ambiente. Na cidade ele é notado pelo uso do chapéu, do tênis sujo, do tamanho
da mochila. Na estrada, ele é notado pelo fato de que ninguém mais anda a pé.
Aliás, andar a pé, em todos os tempos, sempre foi sinal de miséria. Nos tempos
pré-veículos automotores, usava-se o transporte animal para os mais ínfimos e
banais deslocamentos. Desde os muares e equinos até as cadeirinhas levadas por
escravos.
Mas o andarilho esbarra num dilema ao
escolher o hotel. Quando ele entra num hotel barato, os pobres que ali estão o
veem como um rico diletante. Seus tênis
são mizuno, a mochila é poderosa e técnica, as roupas são sintéticas e têm um
quê estranho, pois são tecnológicas. E usam chapéu. Pobre agora só usa boné.
Mesmo sendo de palha, chapéu agora é coisa de rico em férias. E para os pobres
dessas paragens, férias é coisa de rico. Sendo que todo rico não precisa
trabalhar. É vagabundo, portanto. Enfim, um rico excêntrico, sentimos o
desprezo no olhar da clientela esparramada pelo hall.
Porém, se escolhemos um hotel caro,
também sofremos os olhares desabonadores da freguesia. Desaprovam, deduzindo
que vamos ter dificuldade pra comprar comida no final do mês. Os ricos que ali
pululam pensam que somos pobretões querendo arrotar caviar. O tênis é de marca,
mas molambento; a roupa é boa, mas suja e surrada. E o suor de andar a pé é
evidente e cheira. E andar a pé é imperdoável coisa de pobre. E o volumoso rolo
do isolante térmico que usamos como colchão nas noites de barraca, que vai
amarrado à mochila por fora, indica que dormimos na rua e provavelmente somos ou
estamos em processo de nos tornar sem-teto. E, enfim, em qualquer parte do
mundo, quem tem dinheiro sobrando não gosta de frequentar os mesmos ambientes
de quem tem dinheiro faltando.
12 - ESTRADAS EM TERRA OU ASFALTADAS?
Qual a melhor para caminhar? Depende. Em
geral, as não pavimentadas são melhores, mas não por esse motivo em si. Correr
na terra é melhor que correr no asfalto, por causa do menor impacto na pisada
do corredor, fator importante para sua saúde. Mas para o andarilho, o impacto é
mínimo e essa diferença é
insignificante. Outros fatores, como a intensidade e a velocidade do
tráfego de veículos e a regularidade do piso são mais importantes. O pior
cenário para o caminhante é uma estrada em terra mas muito bem conservada, que
liga dois pontos de grande atração de veículos. Passei por isso entre S.J.B.do
Glória e a MG-050, 20 Km paralelos à margem norte do rio. Os veículos, muitos
caminhões, atingiam facilmente 80Km/h e levantavam um poeirão. Horrível. O melhor cenário seria uma estrada
asfaltada que liga a vila a 4 ou 5 fazendas. Sem carretas e ônibus, cruzaríamos
com meia dúzia de automóveis apenas no prazo de duas horas. Em igualdade de
condições de tráfego e de paisagem, é melhor caminhar no asfalto, por causa da
ausência de poeira e da maior regularidade do piso. Porém, na prática, isso
nunca acontece. Estrada asfaltada significa muitos carros passando em alta
velocidade. Se for uma rodovia inter-regional, pior, por causa do grande número
de caminhões e da maior pressa dos motoristas. Sem contar o traçado mais reto e
menos sujeito à vida local – a grande diferença das estradinhas locais em
terra. Nesse sentido, o trecho mais bucólico em que passei foi entre Bom Jardim
e Liberdade, uma estradinha estreita e paralela ao Rio Grande, 22 Km, construída
pelos escravos para passar trem. Só que o projeto parou no meio e virou estrada
comum, em terra, onde não passa ninguém.
13 - AS ESTRADAS VICINAIS
Vicinal de vizinho. Aquelas estradinhas
que saem da zona urbana em direção às chácaras, sítios e fazendas e normalmente
morrem lá pelo final do território municipal. Quase sempre em terra, precárias,
muitas com mata-burros e porteiras, vão formando uma malha viária para atender
as necessidades locais de acesso. Assim, são comuns os cruzamentos e
bifurcações e derivações. Porém, quase sempre, essas malhas viárias locais se
interligam com a malha viária local do município vizinho. Essa ligação única e
pouquíssimo frequentada é o maior desafio do andarilho que se aventura a sair
de uma cidade e ir até a outra por esse caminho e não pela rodovia asfaltada
que liga os dois polos urbanos. Eu sempre me aventuro por esses caminhos. Faço
o levantamento prévio nos mapas do Google e levo anotado num papel(só descobri
no último dia que o GPS do celular mostra sua localização mesmo sem sinal de
internet). O problema é que, em geral,
não há placas indicativas e é impossível anotar numa simples folha a enorme
quantidade de variantes, nem as fotos dos satélites permitem isso. Então saio
na fé e na intuição. A orientação de sempre optar pela variante mais batida às
vezes nos faz dar com os burros n’água. Nessa viagem, me perdi duas vezes. No
segundo dia, entre Claraval e Ibiraci e no 13º dia, entre Santana do Garambéu e
Bom Jardim de Minas. No primeiro caso, era uma situação clássica como a
descrita acima. As estradas iam-se apagando, apagando, e cada vez ficava mais
difícil decidir entre as variantes. Até que atingimos aquele caminho único que liga
as duas malhas e onde praticamente não passa ninguém, já que há uma ligação
rodoviária asfaltada para tal. Os usuários daqueles dois últimos sítios, cada
um vai para um lado e o pequeno trecho é usado raramente. Ali é o ponto máximo
das nossas dúvidas, enquanto os caminhos vão-se acendendo novamente, à medida
que a nova urbe se aproxima. É o local de maior cansaço, porque a dúvida gera
cansaço. A dúvida e o desgosto. E muitas vezes coincide com o espinhaço de uma
serra ou as pirambeiras de um vale – acidentes naturais que costumam delimitar
limites intermunicipais - o que só
agrava o problema. Já no segundo caso, não havia rodovia alternativa. Era uma
questão simples de complexidade viária.
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