segunda-feira, 29 de junho de 2015

2/7 - Segunda parte (de sete): Itens 6 a 13.

Ponte sobre o Rio Grande, entre Passos e São João Batista do Glória, MG.

6 - EM IBIRACI, TODO MUNDO É NÉRSO.

É que Capetinga fica ao lado, é município vizinho. Na região, todo mundo tem o sotaque e o vocabulário do Nérso da Capitinga. Dizem que o comediante é baiano, mas deve ter copiado o sotaque dessa região. Mais estranho é ver as mulheres falando daquele jeito. É uma mistura de português arcaico com economia fonética, como a troca do b pelo v(assobio/assovio; bassoura/vassoura; brabo/bravo), do r pelo l e vice-versa, como pomal para pomar e laranjar para laranjal; é uma tendência a abreviar as proparoxítonas, como corgo para córrego, arve para árvore, bebo para bêbado, setmo para sétimo, sabdo para sábado; é a mais deslavada economia, como cê para você e a eliminação dos plurais. E é a revolução linguística da simplificação verbal: por ex., o verbo comer, no presente do indicativo, tem apenas uma forma: “come”. A gente come (para eu como), tu come, ele come, nois come, vóis come, eles come. O verbo fazer: a gente faiz, tu faiz, ele faiz, nóis faiz, vóis faiz, eles faiz. E na linguagem culta desse povo, só se usa a terceira pessoa: “a gente” é pronome da 1ª pessoa, tanto do singular, quanto do plural, e se conjuga com o verbo na 3ª pessoa do singular; e “você(s)” é pronome da 2ª pessoa, que também se conjuga com o verbo na 3ª pessoa. Pensando bem, acho que o Nérso colheu café em Ibiraci.

7 - AO SUL DO RIO GRANDE, TODO MUNDO É PAULISTA.

Se eu fosse mais pernóstico bairrista chauvinista, reivindicaria todo o território ao sul do Rio Grande para São Paulo. Até a nascente, lá perto de Resende, Rio de Janeiro (e se isso tivesse qualquer importância, eis que no Brasil a Federação é apenas teórica, não tem sentido prático. Ex.: os estudantes de Mirantão MG estudam em Visconde de Mauá RJ sem nenhuma burocracia). Tive essa ideia quando estava caminhando entre São João Batista do Glória e a MG-050, ao norte do rio, nas bordas da Serra da Canastra, onde nasce o São Francisco. Eu olhava para a outra margem do rio, e não me acostumava com a ideia de que lá ainda era Minas e não São Paulo. Porque, para mim, do noroeste paulista, Rio Grande é sinônimo de divisa entre SP e MG. E aquele povo todo falando mais caipira que os mais legítimos caipiras de Tietê ou Piracicaba? O sul de Minas é paulista. Na hora do vamovê, da precisão, todos correm pra São Paulo e não pra Belo Horizonte. E veja se a soma de palmeirenses, santistas, corintianos e sãopaulinos não é maior que a de atleticanos e cruzeirenses e americanos. No mínimo, essa nova disposição territorial restabeleceria a política do café com leite. Pois do jeito atual, Minas está com o café e com o leite.

8 - A ALIMENTAÇÃO TÍPICA DO ANDARILHO.

Nunca tive a paciência de calcular quantas calorias se gasta pra caminhar 50 Km num dia, carregando 12 Kg nas costas, subindo e descendo morros. Mas sei bem o quê e quanto se precisa comer para não faltar nem sobrar (eis que entrei e saí com o mesmo peso dessa empreitada). Pela manhã, um copo grande de leite com café quente e dois pães com manteiga. Ao longo do dia, 3 sanduíches de mortadela, levados para comer no caminho – comendo e andando, bem distribuídos no período. Ao final do dia, comida caseira completa, arroz, feijão, etc. Em algumas situações, isso se invertia. Almoço completo e sanduíches no jantar, especialmente quando ia dormir na barraca. E água a toda hora. Cerca de 4 litros por dia, variando conforme o calor e a sudorese. Quando tinha oportunidade, comprava alguma banana pra comer imediatamente.

9 - O MEU RIO GRANDE.

Descobri decepcionado que o meu Rio Grande não é tão grande assim, quando comparado com outros rios. Só na Amazônia há uns dez maiores. O próprio Rio Grande, que separa o México dos EUA, é muito mais longo e provavelmente mais volumoso em média. Aliás,  é incrível a falta de criatividade do povo na denominação dos rios. Descubro estupefato Rios Grandes por todo lado, aqui mesmo na grande São Paulo há um Rio Grande, formador da Billings. É Rio Grande, Rio Pequeno, Rio Bonito, Rio Turvo, Rio Verde, Rio Preto, Rio Pardo, Rio Dourado, Rio Cachoeirinha, Rio Capivari, Rio das Pedras pra todo lado. Mas pomposo é o nome do corgo que banha o povoado de Mirantão, no coração da Mantiqueira: Rio da Prata. Sendo que é muito barulhento de corredeiras, ao contrário do homônimo portenho. Mas a decepção maior vem por conta da pendenga entre o Rio Grande e o Paranaíba. Segundo os mapas, esses dois rios se juntam para formar o Rio Paraná. O Rio Paranaíba é mais curto que o Rio Grande, mas deve ter maior volume d’água na foz, pois drena uma bacia muito maior. E alguns geógrafos advogam a ideia de que o Paranaíba é o próprio Paraná. Nesse caso, o Rio Grande seria apenas um afluente! Isso é quase insuportável às minhas crenças imorredouras. E qual o melhor critério para estabelecer o tamanho de um rio: o percurso ou o volume d’água? (se for o volume d’água, medido onde? Porque nem sempre o volume d’água na foz é o maior de um rio, sabiam? E lembrando que os rios Grande e Paranaíba não têm mais foz. O lago de Ilha Solteira cobriu tudo). O fato é que, frias considerações à parte,  e independente de qualquer parâmetro, o meu Rio Grande é realmente muito grande. É o rio mais grande da minha aldeia.

10 - AS MISÉRIAS DOS HOTÉIS BARATOS.

Evidente que nem cogito a ideia de ficar num hotel caro. Porque creio que o principal produto dos hotéis caros é a mordomia, enquanto o dos hotéis baratos é a estadia. E gosto de empregar meu dinheiro no que preciso. E quando estou caminhando, preciso à noite apenas de um lugar mínimo para descansar o corpo e um banheiro para limpar a pele e lavar a roupa. E isso qualquer hotel oferece.
Só que no hotel de Passos, o dono era um casal de mais de 80 anos, que estava sentado num sofá na recepção, como se fosse hóspede, a vigiar disfarçadamente o recepcionista e o negócio. Sabe aqueles empreendedores sem fé? Era. O recepcionista das 8h da noite era o mesmo das 5h da manhã do dia seguinte. Expediente de 24h. 366 dias por ano.. Quis receber adiantado. Precisei pedir a toalha. Que era ridícula. Fiquei com preguiça de pedir sabonete. Usei meu sabão de lavar roupa. Horrível a qualidade dos materiais usados na construção do quarto e do banheiro. Tudo ponta de estoque do standard do standard. E muita coisa funcionando em gambiarras. Fios, tomadas, espelhos, ligações hidráulicas...azulejos, torneiras, sanitários, chuveiros, portas. A miséria de apenas uma tomada elétrica, sendo que atualmente os viajantes levam vários gadgets elétricos que precisam recarregar durante a noite. Eu levava lanterna e celular. O café da manhã ficava pronto a partir das 4h30, me informou o funcionário. Desconfiei. É que era ao pé da letra. Era apenas um café na manhã, na garrafa térmica. Um café preto. Mas amarelo de fraco. Como todo café que encontrei pelo caminho. Isso é certo, porém não confirmado, porque achei um desaforo tão grande que sequer toquei na garrafa. Entrei direto na primeira padaria. Mas não deve ser por economia esse tradicional café fraco dos mineiros. O estado é o maior produtor de grãos. Ou por isso mesmo: eles conhecem e sentem na carne o custo de produzi-lo. Deve ser por isso que os italianos fazem o café mais caprichado do planeta. Eles nunca produziram um grão. Mas justiça seja feita: em Minas, o que o café tem de ruim, a pinga tem de boa.
No hotel de Capitólio a construção era boa, mas os lençóis eram curtos.  Bons, mas curtos. E algo que me irrita é lençol que descobre o colchão quando dormimos. Não é o lençol que fica por cima curto que me irrita, como vocês pensaram, mas o de forrar.
Interessante é que qualquer hotelzinho, agora, tem wi-fi. E televisão. O porteiro, orgulhoso,  nos passa logo o controle remoto, que deve ser devolvido na saída. Como se o fato de haver um aparelho vagabundo de TV no quarto fosse indício de alta categoria do estabelecimento.
A mesquinhez maior se dá nesses hotéis localizados em cidades maiores, tocados por empregados. Nos povoados e cidades menores, eles são operados pelos próprios donos, normalmente a mulher, cuja família mora no próprio estabelecimento. Como não costuma haver restaurantes no comércio dessas vilas, os hotéis oferecem também as refeições. Que costumam ficar dispostas em panelas sobre o fogão a lenha, em que nos servimos à vontade. Junto com os membros da família. Esse ambiente sadio compensa todas as mazelas.

11 - O PROBLEMA DA HOSPEDAGEM DO ANDARILHO.

O andarilho é um sujeito exótico no ambiente. Na cidade ele é notado pelo uso do chapéu, do tênis sujo, do tamanho da mochila. Na estrada, ele é notado pelo fato de que ninguém mais anda a pé. Aliás, andar a pé, em todos os tempos, sempre foi sinal de miséria. Nos tempos pré-veículos automotores, usava-se o transporte animal para os mais ínfimos e banais deslocamentos. Desde os muares e equinos até as cadeirinhas levadas por escravos.
Mas o andarilho esbarra num dilema ao escolher o hotel. Quando ele entra num hotel barato, os pobres que ali estão o veem  como um rico diletante. Seus tênis são mizuno, a mochila é poderosa e técnica, as roupas são sintéticas e têm um quê estranho, pois são tecnológicas. E usam chapéu. Pobre agora só usa boné. Mesmo sendo de palha, chapéu agora é coisa de rico em férias. E para os pobres dessas paragens, férias é coisa de rico. Sendo que todo rico não precisa trabalhar. É vagabundo, portanto. Enfim, um rico excêntrico, sentimos o desprezo no olhar da clientela esparramada pelo hall.
Porém, se escolhemos um hotel caro, também sofremos os olhares desabonadores da freguesia. Desaprovam, deduzindo que vamos ter dificuldade pra comprar comida no final do mês. Os ricos que ali pululam pensam que somos pobretões querendo arrotar caviar. O tênis é de marca, mas molambento; a roupa é boa, mas suja e surrada. E o suor de andar a pé é evidente e cheira. E andar a pé é imperdoável coisa de pobre. E o volumoso rolo do isolante térmico que usamos como colchão nas noites de barraca, que vai amarrado à mochila por fora, indica que dormimos na rua e provavelmente somos ou estamos em processo de nos tornar sem-teto. E, enfim, em qualquer parte do mundo, quem tem dinheiro sobrando não gosta de frequentar os mesmos ambientes de quem tem dinheiro faltando.

12 - ESTRADAS EM TERRA OU ASFALTADAS?

Qual a melhor para caminhar? Depende. Em geral, as não pavimentadas são melhores, mas não por esse motivo em si. Correr na terra é melhor que correr no asfalto, por causa do menor impacto na pisada do corredor, fator importante para sua saúde. Mas para o andarilho, o impacto é mínimo e essa diferença é  insignificante. Outros fatores, como a intensidade e a velocidade do tráfego de veículos e a regularidade do piso são mais importantes. O pior cenário para o caminhante é uma estrada em terra mas muito bem conservada, que liga dois pontos de grande atração de veículos. Passei por isso entre S.J.B.do Glória e a MG-050, 20 Km paralelos à margem norte do rio. Os veículos, muitos caminhões, atingiam facilmente 80Km/h e levantavam um poeirão.  Horrível. O melhor cenário seria uma estrada asfaltada que liga a vila a 4 ou 5 fazendas. Sem carretas e ônibus, cruzaríamos com meia dúzia de automóveis apenas no prazo de duas horas. Em igualdade de condições de tráfego e de paisagem, é melhor caminhar no asfalto, por causa da ausência de poeira e da maior regularidade do piso. Porém, na prática, isso nunca acontece. Estrada asfaltada significa muitos carros passando em alta velocidade. Se for uma rodovia inter-regional, pior, por causa do grande número de caminhões e da maior pressa dos motoristas. Sem contar o traçado mais reto e menos sujeito à vida local – a grande diferença das estradinhas locais em terra. Nesse sentido, o trecho mais bucólico em que passei foi entre Bom Jardim e Liberdade, uma estradinha estreita e paralela ao Rio Grande, 22 Km, construída pelos escravos para passar trem. Só que o projeto parou no meio e virou estrada comum, em terra, onde não passa ninguém.

13 - AS ESTRADAS VICINAIS


Vicinal de vizinho. Aquelas estradinhas que saem da zona urbana em direção às chácaras, sítios e fazendas e normalmente morrem lá pelo final do território municipal. Quase sempre em terra, precárias, muitas com mata-burros e porteiras, vão formando uma malha viária para atender as necessidades locais de acesso. Assim, são comuns os cruzamentos e bifurcações e derivações. Porém, quase sempre, essas malhas viárias locais se interligam com a malha viária local do município vizinho. Essa ligação única e pouquíssimo frequentada é o maior desafio do andarilho que se aventura a sair de uma cidade e ir até a outra por esse caminho e não pela rodovia asfaltada que liga os dois polos urbanos. Eu sempre me aventuro por esses caminhos. Faço o levantamento prévio nos mapas do Google e levo anotado num papel(só descobri no último dia que o GPS do celular mostra sua localização mesmo sem sinal de internet). O problema é que, em  geral, não há placas indicativas e é impossível anotar numa simples folha a enorme quantidade de variantes, nem as fotos dos satélites permitem isso. Então saio na fé e na intuição. A orientação de sempre optar pela variante mais batida às vezes nos faz dar com os burros n’água. Nessa viagem, me perdi duas vezes. No segundo dia, entre Claraval e Ibiraci e no 13º dia, entre Santana do Garambéu e Bom Jardim de Minas. No primeiro caso, era uma situação clássica como a descrita acima. As estradas iam-se apagando, apagando, e cada vez ficava mais difícil decidir entre as variantes. Até que atingimos aquele caminho único que liga as duas malhas e onde praticamente não passa ninguém, já que há uma ligação rodoviária asfaltada para tal. Os usuários daqueles dois últimos sítios, cada um vai para um lado e o pequeno trecho é usado raramente. Ali é o ponto máximo das nossas dúvidas, enquanto os caminhos vão-se acendendo novamente, à medida que a nova urbe se aproxima. É o local de maior cansaço, porque a dúvida gera cansaço. A dúvida e o desgosto. E muitas vezes coincide com o espinhaço de uma serra ou as pirambeiras de um vale – acidentes naturais que costumam delimitar limites intermunicipais -  o que só agrava o problema. Já no segundo caso, não havia rodovia alternativa. Era uma questão simples de complexidade viária.

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