segunda-feira, 29 de junho de 2015

1/7 - Primeira parte (de sete): Itens 1 a 5.

Rio das Canoas, entre Franca, SP, e Claraval, MG. É a divisa entre SP e MG.

VIAGEM À NASCENTE DO RIO GRANDE

ÍNDICE

1-      INTRODUÇÃO,  2
2-      SUJEITO E OBJETO, 3
3-      RESUMO, 3
4-      FRANCA, 5
5-      BAIANOS COLHEM CAFÉ EM IBIRACI, 6
6-      EM IBIRACI, TODO MUNDO É NÉRSO, 6
7-      AO SUL DO RIO GRANDE, TODO MUNDO É PAULISTA, 7
8-      A ALIMENTAÇÃO TÍPICA DO ANDARILHO, 7
9-      O MEU RIO GRANDE, 8
10-  AS MISÉRIAS DOS HOTÉIS BARATOS, 8
11-  O PROBLEMA DA HOSPEDAGEM DO ANDARILHO, 9
12-  ESTRADAS EM TERRA OU ASFALTADAS?, 10
13-  AS ESTRADAS VICINAIS, 10
14-  MATA-MOTO, 11
15-  SORTE, COINCIDÊNCIAS E OUTROS EVENTOS ALEATÓRIOS, 12
16-  CACHORROS, 12
17-  FILHOTE ABANDONADO (CACHORRO SEM DONO), 13
18-  GUAPÉ, 14
19-  MUNDO VÉIO SEM TRANCA, 15
20-  ROMPENDO CHÃO, 15
21-  MORTES NA ESTRADA: CRUZES, 16
22-  EROSÃO, TERRAÇOS E PLANTIO EM NÍVEL, 16
23-  A SANTA MISSA DOMINGUEIRA, 17
24-  OS BADALOS DE CARRANCAS, 17
25-  FAZENDA ABANDONADA, 17
26-  A ARTE DE PESCAR CARONA, 19
27-  PIEDADE AO PÃO DE PIEDADE, 20
28-  ZÉ MANOEL DE SANTANA, 20
29-  AZEITE. A TRAVESSIA DE CANOA, 21
30-  CASCATA & SERIEMA: O SOM DAS ESTRADAS DO SUL DE MINAS, 22
31-  SOUSA, 22
32-  MINEIRA DO SUL DE MINAS, 23
33-  UMA FERROVIA DO IMPÉRIO. INACABADA, 25
34-  A FERROVIA QUE TRANSPORTA MINAS PARA O JAPÃO, 25
35-  O DESTINO DE RIOS E HOMENS, 26
36-  MADEIRA EM BOM JARDIM, 26
37-  LIBERDADE, MG, 27
38-  LARANJA MADURA NA BEIRA DA ESTRADA, 28
39-  FOTOGRAFIA, 28
40-  VAI LÁ UM ANDARILHO, 28
41-  O RIO GRANDE, 29
42-  ANGU & CANJIQUINHA, 30
43-  O RIO QUE INVERTEU SEU CURSO: PIUMHI, 31
44-  ASSOMBRAÇÃO, 31
45-  FOZES E NASCENTES, 32
46-  TALVEGUE. A PALAVRA-CHAVE PARA SE CHEGAR À NASCENTE DE UM RIO, 33
47-  AFINAL, A NASCENTE DO RIO GRANDE, 35.

1 - INTRODUÇÃO.

Os assuntos e as palavras estão por toda parte. Nós e o alfabeto é que somos limitados. Mas enquanto o alfabeto permite uma infinidade de palavras, nós vivemos a martelar sobre o mesmo assunto. Uns só falam de futebol, outros de religião. Alguns só pensam em corrida e outros só em política partidária. É um que só fala da empresa em que trabalha, é outro que vive para a literatura, e um outro cuja vida consiste em juntar dinheiro. E há aqueles vários que só falam e escrevem abobrinha e abusam da arte de cortar e colar. Mas há um tipo especial. É aquele que pensa muito e ricamente, mas guarda tudo pra si. Nas redes sociais, quando ele está, é só pra acompanhar os amigos e desejar feliz aniversário. Esse é o que mais me preocupa. É alta a probabilidade de estourar-lhe uma artéria vital precocemente.
E Deus e o Diabo também estão por toda parte. Em nosso corpo. Com nossa complexa combinação de hormônios e enzimas a regular nervos e músculos e tendões e cartilagens. E tecidos esponjosos... E ossos que se vão descalcificando. E articulações que vão perdendo a graxa. E banhas. E em nossa mente. Em saudades insatisfeitas. Em remorsos insepultos. Em projetos abandonados. Em mágoas e frustrações. O Diabo nos ataca nos silêncios de alta noite, quando nos lembra da linearidade dos tempos a impossibilitar qualquer retorno, qualquer conserto. Quando a grandiosidade do cosmo cai sobre nós e nos conscientiza momentaneamente da nossa pequenez. E então bate o desespero.
Mas o corpo e a mente podem se comunicar com a natureza e cultivar o campo agreste em que vivemos. Mitigar dores e desesperanças. O corpo e a mente e a natureza estão por toda parte, nas estradas vicinais de Minas, no ar tropical e úmido de beira rio do sul de Minas Gerais. E assuntos, aguardando garimpeiros, nas extensas margens do Rio Grande.

2 - SUJEITO E OBJETO.

O Rio Grande banha a aldeia em que nasci, lá no norte do Estado de São Paulo. Guaraci. Depois escrevo mais sobre esse rio. Por enquanto, lembro isso apenas para justificar meu roteiro de viagem. Seguir rio abaixo ou seguir rio acima? Seguir o rio. Mas 1360 Km era muito para o tamanho da minha necessidade. Porque é isso que tem da sua nascente até seu encontro com o Rio Paranaíba, pra formar o Rio Paraná, lá no vértice dos estados de Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Metade disso era o suficiente para meu gasto.
Foi assim que, em 19 de maio de 2015, embarquei num ônibus no Terminal Rodoviário do Tietê e desci em Franca por volta do meio dia. Extremo nordeste do estado de S.Paulo, próximo ao ponto em que o rio passa a constituir a divisa com Minas, resolvi subir. Poderia descer, mas resolvi subir. Território menos explorado por empresas agrícolas, por causa do relevo mais acidentado. Menos e menores cidades. Fauna e flora menos dilapidadas. E menos represas. Mais água corrente, mais rio de verdade. Porque o rio, em seu médio e baixo curso, é uma sucessão de lagos artificiais promovidos por barragens construídas por Furnas, CEMIG, CESP... para geração de hidreletricidade. Boa parte da energia elétrica consumida no sudeste vem das águas do Rio Grande. E tenho tendências radicais. Preocupa-me o âmago das coisas. Por isso, nada mais lógico que ir à nascente do rio.
Sem um propósito, ninguém sai do lugar. Não creio na existência do flâneur. Quem sai por aí sem destino é porque não tem outra alternativa e quase sempre está mentalmente debilitado. Um cidadão comum carece de um destino. Um sujeito precisa de um objeto. Não tem nada mais sem graça do que um verbo intransitivo. Alguns caminham com o objetivo de chegar a Santiago de Compostela, outros de chegar a Meca. No Brasil, muitos caminham para chegar a Aparecida do Norte, ao Bom Jesus de Pirapora, ao Juazeiro do Padre Cícero. Há quem caminhe para chegar ao Pico da Bandeira ou ao ponto mais alto da Mantiqueira. Há quem dê dez voltas no quarteirão, quem caminhe uma hora no parque. Por duas semanas, caminhei em direção à nascente do Rio Grande. Para mim, era um destino suficiente. Mas, para os apressados, vamos ao resumo da viagem. Em seguida, virão as crônicas inspiradas por locais ou pessoas ou situações vividas durante o caminho.

3 - RESUMO.

Em 19 de maio de 2015, embarquei num ônibus no Terminal Rodoviário do Tietê às 6h da manhã e desembarquei em Franca SP ao meio dia. Almocei num Quilo e iniciei a caminhada em direção a Claraval MG, a 16 Km. Atravessei o Rio das Canoas, que divide SP e MG e caminhei mais 6Km em direção a Ibiraci MG. Escureceu, armei a barraca num cafezal. Nesse dia caminhei 22 Km, sendo 16 em asfalto e 6 em terra.

Em 20.05.15, desarmei a barraca com chuva fraca, ainda escuro. Caminhei quase 1h antes de clarear, usando a lanterna. Peguei uma bifurcação errada e fui dar num curral, próximo à cumeeira da serra. Voltei, larguei meu mapa e liguei meu instinto e, 8Km depois, encontrei o caminho. Cheguei a Ibiraci por volta das 13h. Almocei um PF e peguei um ônibus para Passos, passando por Cássia, Pratápolis e Itaú de Minas. Em Passos, me hospedei num hotel barato, próximo ao centro. Andei 36 Km em estradas de terra.

Em 21 de maio, caminhei de Passos ao trevo de Furnas, na MG-050, passando por São João Batista do Gloria e atravessando pela primeira vez o Rio Grande em enorme ponte. Caminhei 43 Km nesse dia, sendo 23 em rodovias asfaltadas e 20 em estrada de terra. Acabei de chegar a Capitólio de ônibus, onde me hospedei num hotel simples na zona urbana.

No dia 22 de maio, andei 32 Km de Capitólio a Guapé, sendo 10 Km em asfalto. Atravessei o lago de Furnas em balsa. Em Guapé, peguei uma carona até Ilicínea, onde embarquei num ônibus até Boa Esperança. Dormi num hotelzinho ao lado da  rodoviária.

Em 23 de maio, andei 40Km entre Boa Esperança e Nepomuceno, passando por Coqueiral, Frei Eutáquio e Trumbuca, sendo 5Km em rodovia. De Nepomuceno a Lavras fui de ônibus. Fiquei num hotel simples no centro.

Em 24 de maio,  fui de Lavras até a ponte do Rio Grande, em Itutinga, de ônibus. Na ponte, iniciei a caminhada, passando por Itutinga e indo até Carrancas, por estrada asfaltada. 30 Km. Em Carrancas, dormi numa pousada simples no centro.

No dia 25, fui em direção a São Vicente de Minas. Após andar 20Km, um motorista ofereceu carona e eu aceitei, até uma fazenda próxima. Retomei a caminhada. Após 7Km, outro motorista parou e ofereceu carona até S.Vicente. Aceitei. Cheguei ao destino ao meio dia, após caminhar 27Km. Dali a Madre de Deus de Minas também fui de carona e, novamente de carona(sendo estas duas últimas pedidas), cheguei a Piedade do Rio Grande, onde o rio vira para sudoeste. Ali dormi num hotel urbano.

Em 26 de maio, caminhei de Piedade a Santana do Garambéu, passando por Santo Antônio do Porto. Nesse dia, andei  26Km, passando por 4Km de estrada abandonada e atravessando o Rio Grande de canoa. Dormi num hotel em Santana.

Em 27 de maio, andei 50 Km, de Santana a Bom Jardim de Minas, passando pelo povoado de Souza do Rio Grande. Os últimos 10Km do percurso, fui de carona, oferecida espontaneamente. Nesse dia, andei perdido por 4Km.

Em 28 de maio, fui de Bom Jardim a Liberdade. Andei 22 Km e me hospedei no Hotel Central.

Em 29 de maio, fui de Liberdade ao distrito de Santo Antônio do Rio Grande, sem passar pela zona urbana de Bocaina de Minas. Andei 32 Km, sendo 18 em asfalto. Em Santo Antônio, me hospedei numa pousada simples no povoado.

Finalmente, no dia 30, subi a montanha até a nascente do Rio Grande. Caminhei 20Km pela estrada paralela ao rio, saindo de 1200m de altitude e chegando a 1600, no começo da estradinha-trilha. Daí até o alto do Mirantão, a 2200m de altitude, gastei 2,5h. Na parte mais alta, a trilha bem batida não é de gente, mas de gado, o que faz grande diferença para o explorador (a lógica do gado é outra). Passei a noite acampado num gramado a 2000m de altitude, ao lado da grota funda e densamente florestada onde começa o rio.

No dia 31 de maio, desmontei o acampamento e desci a montanha embaixo de chuva fina. A meio do caminho para Santo Antônio, peguei um atalho para o distrito de Mirantão, passando por um trecho de 2Km de trilha nesse percurso. Após caminhar 25Km no dia, cheguei ao povoado, onde me hospedei numa pousada simples.

No dia 1º de junho, saí do povoado de Mirantão às 11h, de carona no ônibus escolar que leva os estudantes para Visconde de Mauá, distrito de Resende, RJ. Em Mauá, peguei um ônibus para Resende, onde peguei outro para São Paulo. Cheguei às 19horas. Nenhum problema, nenhuma lesão adquirida no período. Nem os lábios rachados ou doloridos, que costumam ocorrer nessas caminhadas. Acho que por causa do ar úmido de beira rio.

Totalizando: 405 Km de caminhada, a uma média de 31Km por dia. Destes, 303Km foram em estradas vicinais de terra. Dos 102 Km andados em asfalto, metade era de estradas locais, pouco movimentadas. Uma distância equivalente à caminhada devo ter viajado de carona ou de ônibus.

4 - FRANCA.

Franca é uma cidade grande, que me lembrava fábrica de calçados e time de basquete. Porque lá sempre teve um dos melhores times de basquete do país e há muitas fábricas de calçados. Era hora do almoço, comecei a procurar, ao mesmo tempo, a saída para Claraval – município vizinho do outro lado da divisa com Minas – e um lugar para almoçar. Comércio moderno e variado,  a toda hora apresentava-se a mim um restaurante por quilo, na Av. Presidente Vargas. Não tem nada mais simpático a um viajante, numa cidade estranha, do que encontrar o que precisa. Eu precisava comer e podia escolher as diversas opções que se apresentavam. Almocei. O som ambiente do local era música caipira. Em Franca, e nas diversas cidades que vim a conhecer em seguida, o trabalhador, em sua hora de almoço, come ouvindo música caipira.  No sul de Minas e no norte de São Paulo a música caipira está em toda parte. Segui pela avenida, que seu prolongamento era a rodovia que atravessava o Rio das
Canoas, divisa entre os estados, para chegar a Claraval. Não sem antes me completar de outro item fundamental: um chapéu. Um armazém de insumos agrícolas, ferragens, louças, etc. E chapéus de palha de vários formatos e preços. Tudo que precisava do comércio local, após me alimentar. Um chapéu de palha de folha dupla dos bão, que me protegeu do sol durante toda a viagem. Com tamanho oportunismo, só podia me parecer simpática a cidade. E, ainda, uma ciclovia vermelha enfeitava a avenida.

5 - BAIANOS COLHEM CAFÉ EM IBIRACI.

Por isso não achei vaga no hotel barato da cidade. Eles vêm, ficam de maio a setembro, trabalham na colheita do café, depois acaba o serviço. Aí são obrigados a voltar pra Bahia. Retornam ano seguinte. Alguns ficam presos ao fazendeiro, por dívidas, e têm de trabalhar a safra inteira na mesma fazenda, não podem procurar quem paga mais. Muitos moram em casas antes abandonadas, precárias. Ganham  por tarefa. Por isso trabalham como loucos. Têm de ganhar em 4 meses o que comem em doze. R$8,00 por balaio de 70 litros de café colhido. Escravos. Estendem um pano sob o pé de café e com as mãos ou varas, derrubam sobre ele os grãos. Recolhem o pano, retiram as impurezas como folhas e galhos secos, e despejam num saco de estopa ou algodão os grãos limpos. Ao final do dia, o fazendeiro passa com a carreta e o balaio,  para recolher o produto e medir a produtividade de cada trabalhador. Os sacos são despejados nos balaios e deles para dentro da carreta graneleira.
A maior parte da produção é colhida por máquinas. Os trabalhadores são necessários apenas para colher nos pés onde a colhedeira não pode ir, como aqueles plantados em terrenos muito íngremes, nas encostas dos morros, ou onde não há espaço de manobra.
Os grãos que caem antes da colheita são colhidos pela chamada barreção (do verbo “barrer”, aquilo que se faz com a bassoura, seu Vurro!). No café, ou se faz com o rastelo e a peneira ou com máquinas. Há uma máquina que vai assoprando os grãos para o meio da rua e outra que vai sugando.

Ibiraci, a 800m de altitude em planaltos ondulados de terra massapé, entremeados de pirambeiras e algumas serras, é terra boa pra café. Mas no boteco, ele é amarelo de fraco.

2/7 - Segunda parte (de sete): Itens 6 a 13.

Ponte sobre o Rio Grande, entre Passos e São João Batista do Glória, MG.

6 - EM IBIRACI, TODO MUNDO É NÉRSO.

É que Capetinga fica ao lado, é município vizinho. Na região, todo mundo tem o sotaque e o vocabulário do Nérso da Capitinga. Dizem que o comediante é baiano, mas deve ter copiado o sotaque dessa região. Mais estranho é ver as mulheres falando daquele jeito. É uma mistura de português arcaico com economia fonética, como a troca do b pelo v(assobio/assovio; bassoura/vassoura; brabo/bravo), do r pelo l e vice-versa, como pomal para pomar e laranjar para laranjal; é uma tendência a abreviar as proparoxítonas, como corgo para córrego, arve para árvore, bebo para bêbado, setmo para sétimo, sabdo para sábado; é a mais deslavada economia, como cê para você e a eliminação dos plurais. E é a revolução linguística da simplificação verbal: por ex., o verbo comer, no presente do indicativo, tem apenas uma forma: “come”. A gente come (para eu como), tu come, ele come, nois come, vóis come, eles come. O verbo fazer: a gente faiz, tu faiz, ele faiz, nóis faiz, vóis faiz, eles faiz. E na linguagem culta desse povo, só se usa a terceira pessoa: “a gente” é pronome da 1ª pessoa, tanto do singular, quanto do plural, e se conjuga com o verbo na 3ª pessoa do singular; e “você(s)” é pronome da 2ª pessoa, que também se conjuga com o verbo na 3ª pessoa. Pensando bem, acho que o Nérso colheu café em Ibiraci.

7 - AO SUL DO RIO GRANDE, TODO MUNDO É PAULISTA.

Se eu fosse mais pernóstico bairrista chauvinista, reivindicaria todo o território ao sul do Rio Grande para São Paulo. Até a nascente, lá perto de Resende, Rio de Janeiro (e se isso tivesse qualquer importância, eis que no Brasil a Federação é apenas teórica, não tem sentido prático. Ex.: os estudantes de Mirantão MG estudam em Visconde de Mauá RJ sem nenhuma burocracia). Tive essa ideia quando estava caminhando entre São João Batista do Glória e a MG-050, ao norte do rio, nas bordas da Serra da Canastra, onde nasce o São Francisco. Eu olhava para a outra margem do rio, e não me acostumava com a ideia de que lá ainda era Minas e não São Paulo. Porque, para mim, do noroeste paulista, Rio Grande é sinônimo de divisa entre SP e MG. E aquele povo todo falando mais caipira que os mais legítimos caipiras de Tietê ou Piracicaba? O sul de Minas é paulista. Na hora do vamovê, da precisão, todos correm pra São Paulo e não pra Belo Horizonte. E veja se a soma de palmeirenses, santistas, corintianos e sãopaulinos não é maior que a de atleticanos e cruzeirenses e americanos. No mínimo, essa nova disposição territorial restabeleceria a política do café com leite. Pois do jeito atual, Minas está com o café e com o leite.

8 - A ALIMENTAÇÃO TÍPICA DO ANDARILHO.

Nunca tive a paciência de calcular quantas calorias se gasta pra caminhar 50 Km num dia, carregando 12 Kg nas costas, subindo e descendo morros. Mas sei bem o quê e quanto se precisa comer para não faltar nem sobrar (eis que entrei e saí com o mesmo peso dessa empreitada). Pela manhã, um copo grande de leite com café quente e dois pães com manteiga. Ao longo do dia, 3 sanduíches de mortadela, levados para comer no caminho – comendo e andando, bem distribuídos no período. Ao final do dia, comida caseira completa, arroz, feijão, etc. Em algumas situações, isso se invertia. Almoço completo e sanduíches no jantar, especialmente quando ia dormir na barraca. E água a toda hora. Cerca de 4 litros por dia, variando conforme o calor e a sudorese. Quando tinha oportunidade, comprava alguma banana pra comer imediatamente.

9 - O MEU RIO GRANDE.

Descobri decepcionado que o meu Rio Grande não é tão grande assim, quando comparado com outros rios. Só na Amazônia há uns dez maiores. O próprio Rio Grande, que separa o México dos EUA, é muito mais longo e provavelmente mais volumoso em média. Aliás,  é incrível a falta de criatividade do povo na denominação dos rios. Descubro estupefato Rios Grandes por todo lado, aqui mesmo na grande São Paulo há um Rio Grande, formador da Billings. É Rio Grande, Rio Pequeno, Rio Bonito, Rio Turvo, Rio Verde, Rio Preto, Rio Pardo, Rio Dourado, Rio Cachoeirinha, Rio Capivari, Rio das Pedras pra todo lado. Mas pomposo é o nome do corgo que banha o povoado de Mirantão, no coração da Mantiqueira: Rio da Prata. Sendo que é muito barulhento de corredeiras, ao contrário do homônimo portenho. Mas a decepção maior vem por conta da pendenga entre o Rio Grande e o Paranaíba. Segundo os mapas, esses dois rios se juntam para formar o Rio Paraná. O Rio Paranaíba é mais curto que o Rio Grande, mas deve ter maior volume d’água na foz, pois drena uma bacia muito maior. E alguns geógrafos advogam a ideia de que o Paranaíba é o próprio Paraná. Nesse caso, o Rio Grande seria apenas um afluente! Isso é quase insuportável às minhas crenças imorredouras. E qual o melhor critério para estabelecer o tamanho de um rio: o percurso ou o volume d’água? (se for o volume d’água, medido onde? Porque nem sempre o volume d’água na foz é o maior de um rio, sabiam? E lembrando que os rios Grande e Paranaíba não têm mais foz. O lago de Ilha Solteira cobriu tudo). O fato é que, frias considerações à parte,  e independente de qualquer parâmetro, o meu Rio Grande é realmente muito grande. É o rio mais grande da minha aldeia.

10 - AS MISÉRIAS DOS HOTÉIS BARATOS.

Evidente que nem cogito a ideia de ficar num hotel caro. Porque creio que o principal produto dos hotéis caros é a mordomia, enquanto o dos hotéis baratos é a estadia. E gosto de empregar meu dinheiro no que preciso. E quando estou caminhando, preciso à noite apenas de um lugar mínimo para descansar o corpo e um banheiro para limpar a pele e lavar a roupa. E isso qualquer hotel oferece.
Só que no hotel de Passos, o dono era um casal de mais de 80 anos, que estava sentado num sofá na recepção, como se fosse hóspede, a vigiar disfarçadamente o recepcionista e o negócio. Sabe aqueles empreendedores sem fé? Era. O recepcionista das 8h da noite era o mesmo das 5h da manhã do dia seguinte. Expediente de 24h. 366 dias por ano.. Quis receber adiantado. Precisei pedir a toalha. Que era ridícula. Fiquei com preguiça de pedir sabonete. Usei meu sabão de lavar roupa. Horrível a qualidade dos materiais usados na construção do quarto e do banheiro. Tudo ponta de estoque do standard do standard. E muita coisa funcionando em gambiarras. Fios, tomadas, espelhos, ligações hidráulicas...azulejos, torneiras, sanitários, chuveiros, portas. A miséria de apenas uma tomada elétrica, sendo que atualmente os viajantes levam vários gadgets elétricos que precisam recarregar durante a noite. Eu levava lanterna e celular. O café da manhã ficava pronto a partir das 4h30, me informou o funcionário. Desconfiei. É que era ao pé da letra. Era apenas um café na manhã, na garrafa térmica. Um café preto. Mas amarelo de fraco. Como todo café que encontrei pelo caminho. Isso é certo, porém não confirmado, porque achei um desaforo tão grande que sequer toquei na garrafa. Entrei direto na primeira padaria. Mas não deve ser por economia esse tradicional café fraco dos mineiros. O estado é o maior produtor de grãos. Ou por isso mesmo: eles conhecem e sentem na carne o custo de produzi-lo. Deve ser por isso que os italianos fazem o café mais caprichado do planeta. Eles nunca produziram um grão. Mas justiça seja feita: em Minas, o que o café tem de ruim, a pinga tem de boa.
No hotel de Capitólio a construção era boa, mas os lençóis eram curtos.  Bons, mas curtos. E algo que me irrita é lençol que descobre o colchão quando dormimos. Não é o lençol que fica por cima curto que me irrita, como vocês pensaram, mas o de forrar.
Interessante é que qualquer hotelzinho, agora, tem wi-fi. E televisão. O porteiro, orgulhoso,  nos passa logo o controle remoto, que deve ser devolvido na saída. Como se o fato de haver um aparelho vagabundo de TV no quarto fosse indício de alta categoria do estabelecimento.
A mesquinhez maior se dá nesses hotéis localizados em cidades maiores, tocados por empregados. Nos povoados e cidades menores, eles são operados pelos próprios donos, normalmente a mulher, cuja família mora no próprio estabelecimento. Como não costuma haver restaurantes no comércio dessas vilas, os hotéis oferecem também as refeições. Que costumam ficar dispostas em panelas sobre o fogão a lenha, em que nos servimos à vontade. Junto com os membros da família. Esse ambiente sadio compensa todas as mazelas.

11 - O PROBLEMA DA HOSPEDAGEM DO ANDARILHO.

O andarilho é um sujeito exótico no ambiente. Na cidade ele é notado pelo uso do chapéu, do tênis sujo, do tamanho da mochila. Na estrada, ele é notado pelo fato de que ninguém mais anda a pé. Aliás, andar a pé, em todos os tempos, sempre foi sinal de miséria. Nos tempos pré-veículos automotores, usava-se o transporte animal para os mais ínfimos e banais deslocamentos. Desde os muares e equinos até as cadeirinhas levadas por escravos.
Mas o andarilho esbarra num dilema ao escolher o hotel. Quando ele entra num hotel barato, os pobres que ali estão o veem  como um rico diletante. Seus tênis são mizuno, a mochila é poderosa e técnica, as roupas são sintéticas e têm um quê estranho, pois são tecnológicas. E usam chapéu. Pobre agora só usa boné. Mesmo sendo de palha, chapéu agora é coisa de rico em férias. E para os pobres dessas paragens, férias é coisa de rico. Sendo que todo rico não precisa trabalhar. É vagabundo, portanto. Enfim, um rico excêntrico, sentimos o desprezo no olhar da clientela esparramada pelo hall.
Porém, se escolhemos um hotel caro, também sofremos os olhares desabonadores da freguesia. Desaprovam, deduzindo que vamos ter dificuldade pra comprar comida no final do mês. Os ricos que ali pululam pensam que somos pobretões querendo arrotar caviar. O tênis é de marca, mas molambento; a roupa é boa, mas suja e surrada. E o suor de andar a pé é evidente e cheira. E andar a pé é imperdoável coisa de pobre. E o volumoso rolo do isolante térmico que usamos como colchão nas noites de barraca, que vai amarrado à mochila por fora, indica que dormimos na rua e provavelmente somos ou estamos em processo de nos tornar sem-teto. E, enfim, em qualquer parte do mundo, quem tem dinheiro sobrando não gosta de frequentar os mesmos ambientes de quem tem dinheiro faltando.

12 - ESTRADAS EM TERRA OU ASFALTADAS?

Qual a melhor para caminhar? Depende. Em geral, as não pavimentadas são melhores, mas não por esse motivo em si. Correr na terra é melhor que correr no asfalto, por causa do menor impacto na pisada do corredor, fator importante para sua saúde. Mas para o andarilho, o impacto é mínimo e essa diferença é  insignificante. Outros fatores, como a intensidade e a velocidade do tráfego de veículos e a regularidade do piso são mais importantes. O pior cenário para o caminhante é uma estrada em terra mas muito bem conservada, que liga dois pontos de grande atração de veículos. Passei por isso entre S.J.B.do Glória e a MG-050, 20 Km paralelos à margem norte do rio. Os veículos, muitos caminhões, atingiam facilmente 80Km/h e levantavam um poeirão.  Horrível. O melhor cenário seria uma estrada asfaltada que liga a vila a 4 ou 5 fazendas. Sem carretas e ônibus, cruzaríamos com meia dúzia de automóveis apenas no prazo de duas horas. Em igualdade de condições de tráfego e de paisagem, é melhor caminhar no asfalto, por causa da ausência de poeira e da maior regularidade do piso. Porém, na prática, isso nunca acontece. Estrada asfaltada significa muitos carros passando em alta velocidade. Se for uma rodovia inter-regional, pior, por causa do grande número de caminhões e da maior pressa dos motoristas. Sem contar o traçado mais reto e menos sujeito à vida local – a grande diferença das estradinhas locais em terra. Nesse sentido, o trecho mais bucólico em que passei foi entre Bom Jardim e Liberdade, uma estradinha estreita e paralela ao Rio Grande, 22 Km, construída pelos escravos para passar trem. Só que o projeto parou no meio e virou estrada comum, em terra, onde não passa ninguém.

13 - AS ESTRADAS VICINAIS


Vicinal de vizinho. Aquelas estradinhas que saem da zona urbana em direção às chácaras, sítios e fazendas e normalmente morrem lá pelo final do território municipal. Quase sempre em terra, precárias, muitas com mata-burros e porteiras, vão formando uma malha viária para atender as necessidades locais de acesso. Assim, são comuns os cruzamentos e bifurcações e derivações. Porém, quase sempre, essas malhas viárias locais se interligam com a malha viária local do município vizinho. Essa ligação única e pouquíssimo frequentada é o maior desafio do andarilho que se aventura a sair de uma cidade e ir até a outra por esse caminho e não pela rodovia asfaltada que liga os dois polos urbanos. Eu sempre me aventuro por esses caminhos. Faço o levantamento prévio nos mapas do Google e levo anotado num papel(só descobri no último dia que o GPS do celular mostra sua localização mesmo sem sinal de internet). O problema é que, em  geral, não há placas indicativas e é impossível anotar numa simples folha a enorme quantidade de variantes, nem as fotos dos satélites permitem isso. Então saio na fé e na intuição. A orientação de sempre optar pela variante mais batida às vezes nos faz dar com os burros n’água. Nessa viagem, me perdi duas vezes. No segundo dia, entre Claraval e Ibiraci e no 13º dia, entre Santana do Garambéu e Bom Jardim de Minas. No primeiro caso, era uma situação clássica como a descrita acima. As estradas iam-se apagando, apagando, e cada vez ficava mais difícil decidir entre as variantes. Até que atingimos aquele caminho único que liga as duas malhas e onde praticamente não passa ninguém, já que há uma ligação rodoviária asfaltada para tal. Os usuários daqueles dois últimos sítios, cada um vai para um lado e o pequeno trecho é usado raramente. Ali é o ponto máximo das nossas dúvidas, enquanto os caminhos vão-se acendendo novamente, à medida que a nova urbe se aproxima. É o local de maior cansaço, porque a dúvida gera cansaço. A dúvida e o desgosto. E muitas vezes coincide com o espinhaço de uma serra ou as pirambeiras de um vale – acidentes naturais que costumam delimitar limites intermunicipais -  o que só agrava o problema. Já no segundo caso, não havia rodovia alternativa. Era uma questão simples de complexidade viária.

3/7 - Terceira parte (de sete): Itens 14 a 20.

Estrada em região de terra rossa (vermelha). Perto de Boa Esperança MG.

14 - MATA-MOTO.

E mata-bicicleta e mata-burro. O advento do automóvel no meio rural trouxe a necessidade de inventar o mata-burro, nas estradas sem cerca, que passam no meio do pasto. Senão, os motoristas teriam de abrir depois fechar cada uma das existentes em toda divisa de fazenda. Tenho alguns leitores que não fazem ideia do que seja um mata-burro. Uma vala transversal de 2 metros de largura e um metro de profundidade interrompe a estrada. Sobre ela são colocadas no sentido transversal vigas de madeira ou aço espaçadas entre si 10 centímetros. Têm a função de impedir a passagem de muares, equinos e bovinos, porque, se o fizessem, suas patas entrariam entre as vigas e acabariam presas e provavelmente quebradas. Enquanto isso, o pneu passa tranquilamente. Por isso, ao lado, deve haver uma porteira para permitir a passagem de cavaleiros e veículos de tração animal. Só que no sul de Minas não há mais tais veículos, porque as porteiras, de madeira ou arame, são estreitas, permitindo passar apenas um animal.
Porém, depois de Piedade e até Sousa, encontrei muitos mata-motos. São mata-burros de ferro, com as vigas no sentido longitudinal. Ou seja, as vigas estão no mesmo sentido da estrada. Para os pneus largos dos automóveis não tem problema. Mas os pneus das motocicletas podem se encaixar nos vãos entre as vigas e provocar um acidente. Bicicletas são seres alienígenas naquele mundo e só passam empurradas. Mas todo mundo só anda de moto lá agora, um fenômeno recente. O motoqueiro precisa ir muito devagar, para acertar a viga, como um burro manhoso a escapar do pasto. 

15 - SORTE, COINCIDÊNCIAS E OUTROS EVENTOS ALEATÓRIOS.

Dizem que a sorte ajuda os bêbados, os imprevidentes. Há quem garanta que a sorte ajuda os esforçados (a sorte ajuda quem cedo madruga). Eu digo que a sorte ajuda os atrevidos. Eu não via viva alma há uma hora, quando me deparei com uma indecifrável bifurcação. Nesse instante, parou uma caminhonete ao meu lado. Aí foi só perguntar. Eu estava perdido perto de Claraval e a água acabara. De repente, uma mina acessível, com uma mangueira adaptada, para facilitar a captação nas garrafas. Após caminhar 35Km debaixo de muita poeira, eu chegava à MG-050, próximo à ponte do Rio Grande abaixo da barragem do lago de Furnas, determinado a esperar ali o ônibus para Capitólio. Nisso para o caminhão com técnicos da CEMIG para conversar comigo, especular. E me informam que os ônibus não passavam naquele trecho, desviavam pela crista da barragem, eu deveria caminhar à esquerda ou à direita até os trevos onde eles saíam ou entravam na rodovia. Eu teria ficado a tarde inteira ali... Chego no porto da balsa para Guapé e ela está zarpando. Tenho de esperar ela ir e voltar. 20 minutos. Foi o bastante para perder o último ônibus para Ilicínea, pois cheguei na rodoviária às 14h10 e ele havia saído às 13h55. Fui à saída da cidade e o primeiro que passou me levou de carona. Economizei a passagem e ainda fui conversando com um morador local, com quem obtive muitas informações sobre a região e a inundação das terras e da cidade ocorrida em 1963, com a construção do lago de Furnas. Enfim, tento fazer a sorte acontecer. Dou muitas alternativas ao acaso.

16 - CACHORROS.

É sabido que em toda casa de beira de estrada há um cachorro na vigia. Mas eu acrescento que raramente há apenas um. Quase sempre é uma matilha. E quando não há nenhum, fico triste, porque significa que a propriedade está abandonada. Os cachorros fazem aquele escarcéu, a gente passa, eles se aquietam. De repente, o escarcéu recomeça e eles vêm em nossa direção novamente. Foi o dono que atiçou. Filhadamãe! Aí lembramos do rosto fugidio que apontou e desapareceu rapidamente quando passamos em frente. Aqueles caboclos arredios, que não gostam de gente... Creio que fazem isso para se divertir com esse tipo de molecagem que consiste em deixar o forasteiro em apuros, para deixar de ser besta. Comigo se decepcionam, porque tenho um método infalível e pouco trabalhoso de enfrentar cachorro: é só colocá-lo em seu devido e inferior lugar intelectual. O que não posso fazer com os respectivos donos, portadores de incontornáveis manhas. Em duas ocasiões, tive vontade de passar-lhes uma descompostura. Na estradinha que dava na trilha da subida da montanha da nascente do Rio Grande, encontrei um casal acompanhado de seus dois cachorros. Que me acossaram com muito escândalo. E os donos na muda, sem qualquer gesto ou grito para controlá-los. Já na estrada paralela ao Rio da Prata, em direção ao povoado de Mirantão, um cachorrão realmente feroz escapou do seu cercado e avançou em mim com maior ênfase. Certamente era um bom ator. Tive o  trabalho de parar e me virar e gastar um olhar mais severo para aquietá-lo. Tudo sob os olhos impassíveis de um cavaleiro que tangia o gado no pasto ao lado, dono do cadelo.

17 - FILHOTE ABANDONADO (CACHORRO SEM DONO).

Logo no primeiro dia da caminhada, na rodovia entre Franca e Claraval, comecei a ouvir um ganido incomum, que lembrava o canto da seriema. Então apontou do meio do capinzal no acostamento um cachorrinho preto, com seu andar desengonçado e seu latido agudo de filhote. Olhei em volta, nenhuma casa. Já saquei toda a história. Conheço-a bem. Casa pobre de caipira, a cadela pariu uma ninhada, cada um mais saudável que o outro, a casa já devidamente guardada por quatro adultos. O matuto falou com os vizinhos, avisou parentes distantes, acho que até anunciou na rádio, conseguiu destinar cinco, mas esse último não teve jeito. Esperou quase um mês. Ninguém. Não havia espaço para mais um cachorro no lar. Foram de carro até o local mais ermo da estrada e soltaram-no lá. Nem boa sorte desejaram, porque, afinal, não era gente... e o mundo urge, se cochilarmos as coisas práticas passam por cima.
O cãozinho passou a me seguir, bem junto de mim, como a dizer que não admitia minha rejeição, porque eu era sua única esperança. Ele havia chegado ao mundo há pouco e dependia de mim para sobreviver. É comum cães sem dono acompanharem andarilhos por longos trechos, até se cansarem daquela mesmice humana de andar sem parar para cheirar nada. Mas filhotes, e ainda implorando com todos seus recursos expressivos para não desistirmos dele, foi a primeira vez que me ocorreu. Tentei alguns recursos para fazer o cachorrinho desistir de mim. Bati o pé, gritei, fiz cara feia, ameacei com vara, ameacei chutar e nada. Ele estava realmente desesperado e quanto mais eu o repelia, mais ele se apegava a mim. Cogitei a ideia de levá-lo a alguma casa próxima e deixá-lo com o morador. Mas conheço esse povo, sei qual seria a resposta. Sendo que levar o cachorrinho comigo estava fora de cogitação porque, além de abortar a minha caminhada, ainda me obrigaria a viajar 500Km de ônibus com ele, coisa que me parece não ser permitido. E realmente não sou adepto de animais em nossas residências urbanas.
Para enrijecer meu coração, passei a considerar que aquele cachorrinho poderia crescer sem dono. E isso seria uma felicidade. Porque indubitavelmente é triste a vida de cachorro com dono. Sempre no mesmo lugar, comendo a mesma comida, usando uma incômoda coleira,  e sendo espezinhado pelo dono a toda hora. Recebendo cafuné da mesma mão. Sendo levado ao veterinário e chamado de Joaquim ou Pierre. Isso quando não fica preso a uma corrente ou quando não mora em apartamento. Ou quando não tem um dono ranzinza. Ou não precisa brincar com uma criança. E só podendo ver a cachorrinha da vizinha de longe. Cagando e sofrendo o desaforo de ver o dono imediatamente  recolher suas fezes.
Um cachorro sem dono corre muitos riscos, é certo. É baixa a probabilidade dele chegar à vida adulta. Ainda mais quando abandonado filhote à beira de uma rodovia. Mas, se ele consegue sobreviver, atinge a sorte grande. Tem uma vida ativa pela frente. É comida farta e variada que ele mesmo vai caçar, muitas cadelas vadias e o mundo como quintal. E jamais será chamado por nome de animal de outra espécie. É caso em que vale o risco à segurança. Saí correndo até o cachorrinho me perder de vista. Sou um irresponsável sentimental, porque cativei e fugi? Que nada! Fui apenas a bola da vez. O primeiro que passou em sua fase carente. Um cachorrão que nos acompanha vai como companheiro, independente – um igual. A amizade é desfeita à primeira contrariedade. Mas o filhote queria um dono. E isso eu não estava preparado pra ser.

18 - GUAPÉ

Cheguei na beira do porto árido de árvores e areias, de argilosas praias. A balsa deu meia volta me deixando a ver navios imaginários. Guapé do outro lado, por causa de um minuto de atraso eu teria de esperar a balsa ir e voltar. A cidade de Guapé, contra a vontade, pontificando a península artificial que apontava na margem oposta, arredada que fora quando da inundação do mundo. O mundo de água e ar e argila e nenhum cuitelo.
Guapé ficava na beira do Rio, havia uma ponte para unir as margens. É incrível como a caboclada gosta de uma baixada, de uma beira de rio. Ninguém constrói a casa lá em cima, no morro. Toda cidade ou povoado fica no vale. Acho que por causa da facilidade do acesso à água. Aí veio Juscelino e inventou de construir uma barragem enorme, para represar o rio. Juscelino, com sua mania de desalojar os acomodados. Os funcionários públicos federais, com a mudança da capital do Rio para o nada do planalto central. Os caboclos ribeirinhos, com seus pitos e suas violas e seus ranchos de pau a pique e seu centenário conformismo, com a inundação de suas terras. Guapé foi inundada, o governo construiu outra cidade mais pra cima. Por isso a igreja tem arquitetura moderna – será que é do Niemeyer? esse ideólogo de igrejas tão lindas e tão claras onde até se esquece de rezar -  e as praças e as ruas têm um traçado muito diferente das outras cidades próximas. O sertão virou mar em 1963 e as turbinas hidrelétricas começaram a girar em 1965. Minas finalmente ganhou um mar. Muita gente desgostosa deixou a região. Muitos fazendeiros se negaram a vender as terras ao governo (indenização). Para eles, havia no mundo uma única lógica na transação de terras. A lógica da propriedade privada. Não queriam vender, não estavam interessados no negócio. Até que a água subiu, coisa de Deus, e o mundo de muita gente submergiu, como se fosse o Dilúvio. Entraram na Justiça, houve suicídios, muitos se mudaram para Pratápolis. Onde havia a ponte, hoje há a balsa, operada gratuitamente pela operadora da barragem. E a cidade é sem graça. O rio passava e o mar agora fica parado no meio do território do município, algo pouco lógico, considerando que esse rio, uma centena de quilômetros abaixo, divide dois estados. E considerando o costume de usar grandes acidentes naturais como limites administrativos intermunicipais.

19 - MUNDO VÉIO SEM TRANCA.

E muitas porteiras. Vou de ônibus até Itutinga e de lá continuo a pé até Carrancas. Mas é domingo e o circular só vai até Itumirim. Então vou com o circular, desço no trevo de Macuco e acabo de chegar de carona. Ou vou andando. Se atrasar e não chegar antes do escurecer, acampo na estrada. Para isso, levo a casa nas costas, 2,5 Kg a mais. Mas poderia iniciar a caminhada em Rosário ou ficar dormindo no hotel em Lavras. E se eu ficasse curtindo uma praia no Capivari, a meio caminho? Ou improvisasse um anzol e uma linha num bambu, cujas moitas estão por toda parte? É possível colher minhocas com a mão, no brejo beira rio. Ligo a internet móvel ou economizo? Vale a pena ver as últimas notícias? Nego ajuda ao espertinho que perdeu a carteira e quer 8,50 pra voltar pra casa, porque sou andarilho e estou com o dinheiro contado. Incrível como pululam esses tipos nas rodoviárias. Mas abro o Google maps pra mocinha bonita que me pergunta se sei onde tem um mapa. Ela me pergunta se conheço algum lugar bonito pra se ir, está viajando de carona pela BR. Ela quer aventura, mostro-lhe a mochila. Mas ela só aceita carona na BR. Só que aqui não tem BR, aqui tem MG. Sendo que sou SP, mas posso trabalhar com outras letras do alfabeto. Digo que estou a pé, ela tira os trem.  E, afinal, há um ônibus  às 9h45 pra São João Del Rei, que passa em Itutinga. Mais uma etapa viabilizada. Amanhã a gente planeja o depois de amanhã, no hotel em Carrancas, antes de dormir. São Vicente ou Madre de Deus? Só o Rio Grande que não sai do lugar. Represas. Não corre mas sobe ou desce. Pulsa. E o caipira a cismar.

20 - ROMPENDO CHÃO.


Sol, suor e solidão. E subida. E sanduíche. Sou uma máquina de andar. Tenho pé de ferro. E um Kompressor dentro do peito. E possantes ventiladores também, embora não muito confiáveis, como esses fabricados na China. De vez em quando engripam. Pés de ferro, como aqueles usados pelos sapateiros. Em minha casa havia um. Nem sei se ainda há sapateiros hoje em dia, quanto mais pés de ferro. Não me refiro aos operários das fábricas de sapatos, é claro. Só sei que os pés de ferro são insensíveis e eternos, embora os olhos sejam míopes e os ouvidos precários. O coração, os pés, e os pulmões – enquanto funcionam –, compensam os joelhos de plástico de Bangladesh. O chapéu de palha compensa a calvície. Os olhos e os ouvidos estão com os componentes capengas e as pilhas fracas, tudo fabricado em Formosa. Dentro da cabeça tenho um chip coreano. Dá pro gasto. Cheiros e gostos são frescuras que não entram no cardápio do andarilho. Seus captadores são rudimentares, feitos a canivete. Uma máquina bem rodada: dois terços já se foram. O agadê da memória é do mais fundo quintal paraguaio. Dois terços já? Mas tenho os pés de frio e bruto e eterno aço. E um Kompressor dentro do peito. Alemão.

4/7 - Quarta parte (de sete): Itens 21 a 28.

Cruz de beira de estrada, de morto de família pobre ou desleixada.

21 - MORTES NA ESTRADA: CRUZES.

Na viagem vejo muitas cruzes fincadas ao lado do caminho. Nelas escrito o nome do finado e as datas de nascimento e morte. Até hoje nunca vi o nome de uma mulher. E olha que leio todos. Por que as mulheres não morrem à beira da estrada?(a primeira cruz que vejo, no dia seguinte, após pensar isto, vou ler o nome, Francisc...Francisca!).  Só não faço o sinal da cruz porque não sou populista. E me mata a curiosidade de saber os detalhes da tragédia. Todos pensam num  acidente ou atropelamento. Os mais antigos lembram os assassinatos nas tocaias. Ninguém aventa a hipótese de um ataque cardíaco ou cerebral. Seria broxante morrer do coração à beira da estrada. E se o finado caiu do cavalo, quebrou o pescoço? Ou morreu de canseira? Deitou pra descansar, dormiu, não acordou mais...  Mas e se fosse o ataque de uma onça? Uma cobra? Uma abelha! Foi! No Caminho da Fé, perto de Consolação, um peregrino morreu de picada de abelha. Tinha alergia, morreu. Três ou quatro abelhas, morreu ali, sem socorro. E tenho pena dos mortos cujas cruzes estão capengas abandonadas. A família se muda para longe, a cruz fica descuidada. Há cruzes que, de tão desamparadas, despertam a comiseração da população vizinha e, sem explicação, põem-se a inspirar feitos e curas inexplicáveis. Seus titulares galgam o imaginário coletivo e triunfam sobre o ostracismo familiar. Mas esse hábito de cultivar os mortos está entranhado em nós. Me emocionou o epitáfio numa cruzinha perto de Liberdade, de alguém que morreu com 28 anos, em 2006: “Se perguntarem por mim, diga que fui morar na casa do pai”.

22 - EROSÃO, TERRAÇOS E PLANTIO EM NÍVEL

Vou andando e observando a faina agrícola, agricultor de nascença que sou e alguma formação técnica que tenho. Me impressionaram pela qualidade as lavouras de café de Ibiraci e Boa Esperança e as de milho e sorgo de Pratápolis. Mas eles não plantam em nível nem constroem terraços para evitar que as águas das chuvas escorram pelo terreno e provoquem erosão do solo, práticas elementares em São Paulo. Não deve ser por ignorância ou pobreza, creio, essas lavouras citadas são altamente mecanizadas e tecnicamente cuidadas. Deve haver algum outro motivo técnico que desconheço. Até a altura de Lavras a terra é bastante argilosa e, por isso, mais resistente às enxurradas. Mas à medida que o solo vai-se tornando mais pobre em argila, que funciona como cimento, vemos o surgimento das voçorocas. Um fazendeiro de São Vicente me disse que isso se deve à burocracia da fiscalização ambiental, que exige complicadas licenças para se introduzir na fazenda um trator de esteiras. O trator de esteiras é controlado, como a moto-serra e a dinamite: ele constrói terraços para evitar a erosão, mas pode derrubar e enterrar árvores sem deixar pista.

23 - A SANTA MISSA DOMINGUEIRA.

Sendo que chego na pousada em Carrancas e a Mica, a dona, me diz que vai à missa das 7, logo mais. É domingo. Tomo banho, janto, e vou espiar a praça. Pouco antes das 7 da noite. Os alto-falantes das torres da igreja despejam música religiosa no público e no privado, numa potência que atravessa o urbano e se esvai pelo rural, nivelando por baixo todos os cidadãos crentes e descrentes. Uma musiquinha leve e doce e mole, dessas que dá vontade cantar ao ouvir pela primeira vez. Me vem à mente o romance 1984, do Orwell. Dos oito cantos da cidade, cidadãos e cidadãs - adolescentes ou velhos, em grupos ou sozinhos, casais com filhos pequenos ou idosos de mãos dadas, rapazes, moças -, dirigem-se à igreja em roupas domingueiras, como as abelhas voam para as colmeias. E eu na esquina, secando,  comovido. O mundo ainda vai longe, assim, com tanta gente simples e esperançosa e bem comportada. Constato em mim nenhuma vontade de me irmanar ao rebanho. Que não me esforço para herdar o reino do céu. Mas volto pra pousada e durmo tranquilo, porque, alheio, aposto no milagre. Sou homem de boa vontade.

24 - OS BADALOS DE CARRANCAS.

Os sinos das torres da igreja de Carrancas badalam de 15 em 15 minutos, acionados pelo relógio. 24 horas por dia. Sim, 11h15 da noite, 2h da manhã... Um acorde a cada quarto de hora, acompanhado de badaladas nas horas cheias, onze horas, onze badaladas. E as badaladas não são metálicas, são eletrônicas.  Difundem-se pelos alto-falantes. E a igreja não tem torres e creio que não há relógio algum à vista. É um relógio-ouvido. São duas torres imaginárias. Na cidade todos devem ter ótima saúde auditiva, se esta depender do silêncio da noite. É que no quarto da pousada eu só ouvia meus grilos particulares. E um acorde completo para as horas cheias e meio para as quebradas. Som de piano. Eletrônico. 32 vezes durante as sagradas 8h de sono. A surdez tem suas vantagens... Nesta cidade o padre ainda deve regular as carícias amorosas entre os fiéis na praça. E os descrentes ainda devem ser comidos por fogueiras. Descrentes e não céticos. Aqui nesta cidade a palavra cético não tem cabimento.

25 - FAZENDA ABANDONADA.

Havia saído cedo de Carrancas e tinha 44 Km para chegar a São Vicente de Minas. A estrada de terra era boa e compensava ir por ela, porque a alternativa por asfalto era muito mais longa. Então, por mais que fosse um mundo de pouca gente, sempre era demais o trânsito de veículos, para quem iria passar o dia inteiro comendo poeira. Campos e campos de pastagens nativas, cercas malcuidadas de arame farpado sustentado por estacas capengas e desalinhadas e quase nenhuma vaca ou boi, a sustentar um semiabandono doído. 
Então, lá na baixada, começou a despontar um telhado. Fui me aproximando, era a sede da fazenda, muitas janelas no casarão. Ao lado a curralama. O fazendeiro gostava de construir a curralama perto da casa, para vigiar melhor e também porque o cheiro de bosta de vaca lembrava o doce aroma da riqueza. O casarão de porão alto estava com todas as portas e mais de vinte janelas fechadas e via-se de longe que a caiação das paredes já havia caído há tempos. O capim crescia por toda parte e o bambuzal expandia-se sem nenhum desbaste. Não parei, nem olhei muito. Não fotografei. Me dá tristeza, fugi. E não queria me arriscar a registrar um fantasma.
 O fogo dirigido havia destruído a mata atlântica e o posseiro deixara a paisagem nua à disposição do capim oportunista. Qualquer cabeça de gado daria pouco trabalho e sustentaria a vida mansa e despretensiosa do caboclo. Um ranchinho de pau-a-pique na beira do corgo, vedado com paredes de taipa de varas e coberto de capim sapé. Um cavalo, uma espingarda, alguns anzóis e linhas compradas na cidade. Uma viola, uma cabocla, uma família. E o bambuzal na beira do brejo. E a terra sem preço e sem cartório.
Os caboclos mais sacudidos e menos sensíveis que conseguissem persistir e, ajudados pela condescendência da morte prematura que não levasse cedo os filhos, conseguiam ajuntar um pequeno exército familiar de mão de obra e outras tarefas menos ortodoxas. E, com a ajuda de Deus, o alinhamento adequado dos astros, e alguns safanões convenientes, arregimentar homens e agregar terras e arrebanhar reses que finalmente resultariam em dinheiro e poder. E com isso, outros homens dependentes e fiéis. E estabelecer um feudo de 2000 hectares, com suas roças de cana e milho e feijão, para a subsistência de homens e porcos, que havia muitos no chiqueiro. De comprar, só sal e alguns metros de tecido de algodão, para fabricação própria do que vestir.
Dois mil hectares de terra corresponde a sete quilômetros de comprido na estrada, levando o vale inteiro até onde a vista alcança, de espigão a espigão. O fazendeiro já velho gostava de olhar pela janela alta do casarão – que era um casarão sem varanda – e não avistar terra alheia. Ver a fartura de galinhas e patos no quintal e o cercado da ceva cheio de porco gordo. O canteiro de couve lá no fundo e o arrozal cacheando ali na vereda do brejo, que era uma família sofisticada e já comia arroz... E gado mugindo por todo lado, e peões em seus cavalos lisos a tangê-los. Toda a vizinhança era constituída de súditos e serviçais. Com os quais pescara, caçara, tomara cachaça e sapateara catira quando moço.
E agora os filhos, cada um mais fraco que o outro, a morar na cidade para estudar. Uns montando banca de advogado, outros de médico, uma filha professora, ele cada vez mais cansado, e nenhum sucessor à vista. Mas, macho, sustentou até morrer. A viúva, que nunca fora dona de si, foi levada pra cidade, e o capim começou a crescer à beira da cisterna e no caminho pro mangueiro. Enquanto a fileira de janelas de ambos os lados e as portas da cinquentenária morada eram fechadas para sempre, para regozijo das aranhas e outros insetos e animais sorrateiros. Eis que tudo que é sólido se acaba comido pelo tempo, sufocado pelo capim, esquecido à beira de um brejo. Fugi. E por uns 5 Km foi-me muito penosa a caminhada, porque não tem nada mais cansativo que a tristeza. E se escrevo esta crônica, é apenas para cumprir o dever de repórter. 

26 - A ARTE DE PESCAR CARONA

O sol rachava mamona. Lá embaixo corria o Rio Grande, dava pra ver a ponte. Na colina oposta modorrava a zona urbana de Madre de Deus. Eu sentado à beira do asfalto, pedindo carona para Piedade. Às vezes o mundo sabe ser bom. Nas MGs e BRs vou de ônibus. Ou de carona. Só ando nas vicinais. Estava difícil, poucos carros passando e quem passava não parava. Pedir carona é como pescar. Tem de ter paciência, perseverança e fé. E nenhum horário.
De repente, dois concorrentes se instalam cem metros antes. Agora que estou lascado, pensei. Agora só me resta torcer por eles, que sejam levados o mais rápido possível. Sacanagem. Quem se coloca na via pública tem de estar preparado para praticar o altruísmo.
Estou fragilizado, não sei se quero ou não quero pegar carona rápido. É cedo. É que tenho roupa secando sobre a mochila estendida no asfalto, servindo de varal, aquela que não secou na noite anterior, cueca,  meia, camiseta. Mais uns 15 minutos nesse sol e estarão secas. Levanto o dedão sem convicção. Isso é fatal. Um vendedor, assim como um pedinte de carona, precisa mostrar convicção. Os concorrentes conseguirão rápido, penso, estão mais que convictos, estão entusiasmados com o fato de que irão inapelavelmente de carona para Piedade. Um caminhão para, eles entram. Exulto. Recolho as roupas secas, arregaço as mangas, fico de pé e, pra garantir, ocupo a posição que meus concorrentes ocupavam há pouco. É uma posição testada e aprovada. A arte de pedir carona tem suas minúcias. Dez metros pra cá ou pra lá podem determinar o sucesso ou o insucesso da obra. É preciso se colocar no lugar do motorista e imaginar a direção do seu olhar e a sua palpitação cardíaca em cada ponto da zona de carona. Porque há as zonas de carona nas estradas. Fora delas você fica mofando o dia inteiro, nem adianta, não tem entusiasmo que dê jeito.
Vou à luta, crente. Dez minutos. O Fiat Mille para. Há três homens dentro. Vam’bora! Só se eu fosse macaco novo pra não aceitar a oferenda dos três homens. Três homens com cara de carola. Desconfio do motorista, parece padre. Perigo só existe para quem não tem fé. Quem se estabelece não pode escolher freguês. São de Santana do Garambéu, cidade em que eu chegaria no dia seguinte e pernoitaria. E acrescento que de Piedade em diante – onde o rio faz a curva -, não aceitaria mais caronas.
 E o motorista que parecia padre era mineiro desconfiado(pleonasmo): na tarde do dia seguinte foi conferir se eu estava lá no hotel em Santana. E não sei se por capricho ou por coincidência, passou por mim na saída de Santana para Bom Jardim, oferecendo carona sorrindo, sabendo que eu não deveria aceitar. De Piedade em diante, no sentido nordeste – sudoeste, recebendo o sol da manhã na face esquerda. Vida lôca.

27 - PIEDADE AO PÃO DE PIEDADE.

O pão de Piedade do Rio Grande é fabricado em Longe de Deus, MG. Só pode ser, porque é um pão vagabundo, daquele que só tem vento, quebradiço, parecendo biscoito de polvilho desses sem peso, que derretem na boca. Fui a três padarias e sempre a mesma coisa. Acredito em espírito da terra. Assim como o café que se bebe em Minas é o mesmo em toda parte, assim é o pão que se encontra em Piedade. É um espírito local, porque nas cidades vizinhas o pão é bom. E os padeiros são incompetentes e formais. A dona da padaria em que fui comprar os sanduíches da jornada estrilou quando pedi que cortasse nove fatias de mortadela e colocasse em três pães. Quis me entregar a mortadela e os pães separados. Não, eu queria já juntos. Ela voltou e cortou os pães ao meio, como se o meu problema fosse abrir os pães. Não, eu queria uma coisa dentro da outra, pronta pra ser comida, ela não estava me vendo? Será que eu me parecia com um pacato cidadão em busca do pão para o café da manhã na mesa da cozinha? Não, isso ela não fazia, ela fazia sanduíches de mortadela... Não tem coisa mais enroscada do que um burocrata puro. Se ela desconfiasse que meu principal quesito de avaliação de um povo é a qualidade e o atendimento de sua padaria... E a dura verdade é que não se faz mais roscas doces como antigamente. Em nenhum lugar do mundo!

28 - ZÉ MANOEL DE SANTANA

Bar e restaurante. E Hotel. E o Zé Manoel que trabalha no balcão, na cozinha e na portaria. E serve as mesas, e cobra e dá troco e administra os pedreiros que trabalham na ampliação do negócio. Zé Manoel é sergipano. Porque fala otcho. Burocracia nenhuma. Cheguei, pedi, ele me mostrou o quarto, nem quis saber meu nome. Em Passos e Boa Esperança, cidades maiores, me pediram documentos, preencheram fichas, queriam saber a profissão, tive de assinar, coisa demorada.
Desci pra jantar no restaurante, que  também é boteco, única alternativa aos bebuns da cidade após as 7h da noite. Jantar num restaurante naquela cidade era um fato inusitado, a julgar pelo olhar dos oito homens que petiscavam e bebiam de  pé próximo ao balcão. Uma algaravia, tem hora que é bom ser surdo. Do lado de dentro, Zé Manoel também jantava com um prato sobre o balcão,  interrompendo a toda hora para atender a freguesia ou participar da conversa banal e etílica. Zé Manoel, de meia idade e pança protuberante.

Ali, tudo orbita a personalidade despachada do nordestino Zé Manoel, desde a arquitetura do prédio, que ele vai construindo aos poucos, até a informalidade das relações, passando pelo cardápio e as toalhas plásticas sobre as mesas. Quando ele morrer, não sobra nada.